"a-maior-função-do-homem-no-mundo-é-transformar-se-em--literatura" - Reinaldo Santos Neves

sábado, 28 de dezembro de 2024

Nas águas salobras de Bernadette Lyra [RESENHA]

 


“Mas escrever também pode vencer a correria do tempo.” - Pág. 49

O livro é dividido em três partes sendo que na primeira - ‘Nas águas da memória’ - o enfoque é na infância, o perceber-se ‘viva’ num tempo simples que é descrito como “intervalo entre um começo e um fim.” (Pág. 21)

O encantamento à literatura e a descoberta da magia das palavras se repete livro adentro assim como o descolamento da vida real diante da ficção. O início da escrita, Bernadete - e o nascimento - da escrevinhadora.

“Vocês sabem: quando uma criatura chega ao ponto de conversar com as memórias é como se estivesse conversando com a eternidade.” - Pág. 41

Na segunda parte do livro - ‘Coisas deleitosas da Barra’ -, a escritora nos descreve as paisagens de sua querida Barra, lugar de encanto, das memórias sólidas, o plano de fundo mágico da autora. A primeira percepção da ‘morte’ assim como a cadência das memórias da meninice que compõe este ‘Água salobra’.

Em ambas as partes, sob a benção de Cronos - o grande guardador do tempo e das lembranças por ele produzidas - Bernadete costura sua paixão; à literatura. Da qual fala com amor, uma sensação sublime. Do que é levado pelas marés do esquecimento e também o que é trazido pela brisa da rememoração.

“Repartir pequenas maravilhas que se fazem voláteis e desaparecem, como se tudo fosse uma marca d’água na doçura do papel de seda que a memória suspende contra a luz crua da lâmpada da vida.” - Pág. 52

Retratos de um tempo diferente, que reconforta o coração como o fogão a lenha que aquece o canecão de café - que vai acompanhar o bolinho de chuva -, a luz da lamparina. Nostalgia que só as croniquetes são capazes de nos transportar.

As crônicas, quase descambam em uma autobiografia, de uma eterna menina que resplandece ao escrever sobre sua ‘terrinha’.

“Cultivo esse meu gosto de dobrar o tapete do tempo e depois desdobrá-lo sem muitos cuidados para que os visitantes tropecem em uma lembrança escolhida ao acaso.” - Pág. 66

Já na terceira e última parte do livro - ‘Reflexos de outros verões’ - as crônicas relatam as mudanças que ocorreram em Conceição da Barra, as transformações que ocorrem com as pessoas e lugares, além de alguns encerramentos de ciclos.

Temas como mudanças climáticas, fúria da natureza, algumas breves críticas políticas aos governantes da cidade, e de novo com a literatura ainda permeando seus textos, quase dissecada pela autora; ela que é tema constante.

“Durmo e sonho. É dessa maneira que eu posso sossegar o desassossego. Quando sonho com tantos dourados verões que passei em Conceição da Barra, a minha flor de areia. Na verdade, é lá que está agarrado, para sempre, o meu coração.” - Pág. 90

Bernadete é o cais que recebe suas crônicas - este o mar - e nós leitores, ao acessar essa riqueza de ‘salobras águas’, transbordamos.


quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Entrevistando Contemporâneos & Independentes: Latinidades & Representatividade - João Silvério Trevisan


"Para sobreviver, busquei todas as formas de expressão ao meu alcance, inclusive a escrita.

João Silvério Trevisan

Como a literatura entrou em sua vida?

João: Pela via da minha solidão de menino diferente, quer dizer, homossexual, coisa que eu ainda não suspeitava. Para sobreviver, busquei todas as formas de expressão ao meu alcance, inclusive a escrita. Por volta dos 13 anos escrevi algo que pretendia ser um romance. Na adolescência, ganhei dois prêmios nacionais de contos, e isso obviamente me incentivou muito. Sem falar do padre meu professor de literatura no seminário, um cara antenado com seu tempo, na contramão da estrutura eclesiástica.

Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor(a)?

João: Funcionou como tentativa de aprender formas de me expressar. Mas também as novelas de rádio, o cinema e a música popular ou clássica. Tudo isso me mobilizava intensamente.

Você já viveu muita coisa; enfrentou o HIV, foi um exilado pela ditadura, teve depressão, foi censurado, perdeu pessoas queridas, entre outras que até dificulta minha breve lista de perguntas. Vou iniciar com uma mais geral: qual foi a fase mais difícil da sua vida?

João: Viver na contramão é muito difícil, se você é alguém que não gosta de ser manipulado e procura ser fiel a si mesmo. Seria melhor me perguntar sobre a fase mais feliz da minha vida. O chato é que uma não vem separada da outra. Posso dizer que meus amores foram meus momentos mais felizes e também os mais dolorosos. Mas nunca abri mão daquilo que eles me trouxeram de conhecimento da vida, de mim mesmo e do outro. Amar e viver se equivalem.

Consegue viver de literatura?

João: Financeiramente, muito mal, cavoucando saídas. Mas a literatura me ajuda a sobreviver emocionalmente.

Eu adoro romances autobiográficos, sinto que você faz muito isso de trançar a história das suas personagens com as suas. Eu, como você, ‘sou movido pelo encantamento’, que é sua escrita. Você falou em uma entrevista para o ‘Entrelinhas’, programa do canal da Tv Cultura no Youtube (2024), que ‘elabora sempre um projeto literário[...] se renova em cada nova criação literária”, mas a autobiografia sempre – ou quase sempre está lá -, você concorda? Acha que é uma forma de continuar a contar a história de uma sociedade macro através da sua própria?

João: Sempre busquei minha pátria, como algo que não se reduzia a meras fronteiras geográficas. Nesse sentido, descobrir o Brasil tem sido apenas o início do esforço hercúleo de descobrir quem sou.

"Acho que o luto nunca termina, se essa pessoa faz falta. É o caso do meu irmão Cláudio. Muitas vezes me flagro chorando de saudade dele, por algum motivo inesperado.

João Silvério Trevisan

Quais são suas referências literárias?

João: Não há classificação, algo que nunca busquei. Nunca me ative a escolas e estilos. Se existem referências, elas fazem parte do meu amor pela literatura em si mesma.

Você disse em uma entrevista para a DiaTV no Youtube (2023): "Eu tenho boa parte da compreensão de mundo graças ao cinema.” Qual a importância do cinema na sua vida e (se aconteceu) como ele influenciou João escritor e futuro roteirista/diretor?

João: Não sei responder em termos proporcionais. O cinema me fascina desde a infância, tanto quanto a literatura. Quando vou produzir algo, busco uma forma de misturar linguagens, seja em literatura, cinema, teatro ou música. Mas para fazer essas fusões, sei exatamente quais recursos estou usando de cada linguagem. É fascinante a mestiçagem de linguagens diferentes.

Lida bem com as críticas?

João: Desde que elas se justifiquem, sim. Odeio críticas medíocres, sejam positivas ou negativas. Críticas positivas burocráticas não acrescentam nada. São inúteis como bolhas de sabão. Críticas negativas, quando já projetadas antes mesmo da leitura da obra, nascem da má fé ou do preconceito. São execráveis, no mínimo. Críticas que dialogam com sua obra, essas são para mim essenciais e, infelizmente, raras. A praça está cheia de gente fazendo críticas idiotizadas por modismos.

Seu livro ‘Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade’ é um importante e mais completo estudo sobre a homossexualidade em nosso país e referência para vários outros estudos que se seguiram. Qual a importância dessa obra para a comunidade LGBTQIAPN+ e para a história da sociedade brasileira como um todo?

João: Com “Devassos no paraíso”, eu busquei revelar um país que foi escondido, e presumo que interesse ao Brasil conhecer o Brasil. Sua importância para a comunidade LGBT será determinada por ela.

Cláudio, seu irmão ao qual foi dedicado um de seus livros e inspiração para você sempre foi o ‘contraponto do seu pai’ como disse em uma outra entrevista, ele que faleceu de câncer e que você sempre comenta. Como foi – e sempre será, digo isso, pois é o sinto depois da perda de minha mãe a três anos - o seu processo de luto?

João: Acho que o luto nunca termina, se essa pessoa faz falta. É o caso do meu irmão Cláudio. Muitas vezes me flagro chorando de saudade dele, por algum motivo inesperado.



'Meu irmão, eu mesmo’ é o segundo livro de uma trilogia, ele sucede ao ‘Pai, pai’, e já fez sucesso no mercado literário nacional a ponto de concorrer a grandes prêmios da língua portuguesa. Como você está vendo o retorno (feedback) das leituras e o que nós leitores podemos esperar do terceiro e último livro dessa trilogia; o ‘Antropofágico amor’?

João: Num país como o Brasil, continuo pessimista quanto ao crescimento do público leitor. Acho que os livros continuam vendendo pouco, seja pelo preço seja pela competição com outros setores de entretenimento.

Está trabalhando em algum livro novo no momento?

João: Sim, intensamente, em “Antropofágico amor”, a última parte da minha trilogia autobiográfica e a mais dolorosa de todas, que deve sair em 2025, assim espero. Mas no final deste ano estou lançando a primeira obra de ficção longa que escrevi, em 1979, ainda para o Lampião da Esquina, que ficou até hoje inédita, depois que o jornal e sua editora fecharam. Chama-se “Os sete estágios da agonia”. É bastante experimental, com todos os atrevimentos de um jovem escritor confrontando a maneira como a sociedade heteronormativa tratava a homossexualidade.

Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor.

João: Não existe manual para bem escrever. Busque sua expressividade mais pessoal e dê uma banana para os modismos, que passam muito rápido. É tudo o que posso dizer.










João Silvério Trevisan é escritor ficcional, jornalista, ensaísta, dramaturgo, diretor/roteirista de cinema e um dos principais nomes do ativismo LGBTQIA+ no Brasil. Nasceu em 1944, em Ribeirão Bonito, São Paulo. Na década de 1970, iniciou sua produção artística e assumiu-se homossexual, duas facetas que sempre estiveram imbricadas em sua vida. Seu primeiro, polêmico e único longa-metragem, Orgia ou O homem que deu cria, de 1971, foi censurado pela ditadura civil-militar e, entre outras razões, o levou ao exílio entre a Califórnia e o México. Já de volta ao Brasil, participou em 1978 da fundação do lendário jornal Lampião da Esquina, primeira publicação homossexual do país, e do Grupo Somos — movimento vanguardista na promoção dos direitos da comunidade LGBTQIA+. A convite da editora britânica Gay Men’s Press, escreveu Devassos no paraíso, o grande estudo histórico sobre a cosmogonia das dissidências de orientação sexual e de gênero brasileiras, lançado em 1986, concomitantemente em Londres e São Paulo. Venceu três vezes o Prêmio Jabuti e o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA), foi finalista do Oceanos e recebeu, entre outras, uma bolsa da antiga Fundação Vitae, para escritura do romance Ana em Veneza. Sua vasta produção artística e intelectual inclui mais de uma dezena de livros publicados, roteiros para cinema e peças teatrais. Em 2024 seu romance autobiográfico 'Meu irmão, eu mesmo' foi finalista dos Prêmios Jabuti e Oceanos.