“Inexplicável como tudo hoje em dia.” - Pág. 36
Antonio Candido, em um artigo sobre a nova narrativa brasileira, apontou: ‘Realismo feroz’, em 2006. Como eu queria dizer o contrário 40 anos após o lançamento desta obra, tão real que foge a qualquer fazer literário.
“O inexplicável horror
de saber que
a vida verdadeira.” - epígrafe de Fernando Pessoa, em O horror de conhecer
‘Não verás país nenhum’ narra a trajetória de Souza que, ao descobrir um buraco na sua mão, vai desnudando os sintomas de um país em fase terminal.
“Melhor viver um dia só, sem fim. O que tiver de acontecer, é dentro dele.” - Pág. 23
O Brasil de Souza sofre com aquecimento global, escassez de água e comida, desvalorização da moeda e consequentemente mão-de-obra barata, e ainda pior trabalho análogo à escravidão. Além de censura, tortura e etcétera.
“Um país subdesenvolvido vivendo em clima de ficção científica. Sempre fomos um país incoerente, paradoxal. Mas não pensei que chegássemos a tanto. O que há em volta de São Paulo? Um amontoado de acampamentos. Favelados, migrantes, gente esfomeada, doentes, Molambentos que vão terminar invadindo a cidade. Eles não se aguentam além das cercas limites. Não há o que comer!” - Pág. 117
O livro possui parágrafos curtos que, na minha opinião, facilitam a leitura deixando o texto fluido, mais rápido. Vejo muito da história do Brasil - visto que Ignácio também é jornalista - entrelaçadas nas páginas de ‘não verás’.
“Se as pessoas quisessem, haveria possibilidades. Não há querer, ninguém vê nada. Todos tranquilos, aceitam o inevitável. Os jornais não dizem palavra. Calaram-se aos poucos. Mesmo que falassem, não têm força nenhuma. A televisão está vigiada.” - Pág. 32
É uma distopia, onde o ‘Esquema’ controla a cada passo, fala e ação das pessoas. Personagens estes que, repletos de camadas, carregam a narrativa bem escrita Ignácio. Em um mundo pré-apocalíptico - acho que vale o termo -, onde você precisa de fichas para caminhar pelos setores do país, sempre vigiados pelo Militecnos, impossível não linkar com o estado atual do país. É triste, mas tenho que concordar com Candido: ‘não verás’ é o retrato fiel do que diz-se realismo feroz.
“O mundo é o que está aí, põe isso nessa cabeça. Você está agarrado no trem pelo lado de fora. Nem pula, nem entra.” - Pág. 367
Mas nem tudo é negativo no romance vencedor do Prêmio lILA, na Itália em 1983, que no fim nos lança o horizonte cimentado de São Paulo uma breve festa de esperança:
“Então vi. No chão gretado, havia um pequeno arbusto. Duas folhas somente. Verdes[…] Uma pequena e alegre planta, crescendo corajosamente entre as fendas calcinadas[...]
Abaixo me junto a planta. O solo é gelado. Contemplo o ramo. Nesta planície agreste, ele cresce, indiferente. Alheio à sua própria impossibilidade de crescer[…] Viviam e cresciam desafiando impossibilidades[…] Esta é a sua maneira de resistir[…] Nosso conceito de viver tem que ser modificado, para nos adaptarmos.” - Págs. 359/360
Um vislumbre que nem tudo está acabado.
Não verás país nenhum nasceu a sombra da ditadura militar como o conto ‘O homem do furo na mão’, em 1976, quando Ignácio trabalhava na Editora abril.
Num dia monótono quando a censura havia espantado quase todos os leitores da revista o escritor, na redação vazia, rabiscou círculos na sua mão.
Um amigo perguntou onde havia conseguido o ‘buraco’, no qual ele respondeu sorrindo: ‘vinha no táxi, a mão começou a coçar’.
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