Como a literatura entrou em sua vida?
G: Meu pai era advogado, minha mãe professora, então tínhamos uma grande biblioteca em casa, não só de livros técnicos, referentes às ocupações deles, mas também de Literatura. Comecei, como os da minha geração, lendo Júlio Verne e Monteiro Lobato; daí para Mark Twain, J. Fenimore Cooper, Alexandre Dumas, Emilio Salgari, e, entre outros, o brasileiro Francisco Marins. Lembro-me de que a série de Marins “Trilogia dos Martírios”, sobre a busca da Serra das Esmeraldas no interior do Brasil, me fez muita impressão na época. Paralelamente a isso, os quadrinhos, especialmente Tarzan, Fantasma, Príncipe Valente, Pato Donald e Mortadelo & Salaminho.
Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor?
G: Pode se tratar de lugar comum, mas sem leitura não se escreve. Ou, não sendo bom leitor, não será bom escritor. Desde a gramática à sintaxe, até a atitude pessoal de abertura a novas ideias e o desenvolvimento de uma visão própria de mundo, tudo isso é no mínimo facilitado, se não, de fato, proporcionado, pela leitura. Por isso também a necessidade de se planejar o que se lê. Ou, ao menos, tornar-se um leitor consciente.
Consegue viver de literatura?
G: De escrita, pura e simplesmente, creio que muito poucos conseguem. No entanto, há atividades ligadas à Literatura, como a edição de textos, a realização de cursos e palestras, a tradução e outras, que proporcionam um entorno à atividade do literato e permitem, sim, que se viva da(s) atividade(s). No meu caso, sou magistrado, e a Literatura complementa a minha atividade, não fosse ela desenvolvida na sua maior parte por meio da expressão escrita. Mesmo a criação literária propriamente dita, a ficcional e a poética, acabam interagindo com a atividade profissional, influenciando e sofrendo influência dela, seja em temas a serem explorados, seja no estilo de redação, por exemplo.
Qual a maior dificuldade que encontra para chegar ao público leitor?
G: Existem aquelas de caráter mais geral, como a deficiente formação de leitores, muito mais dificultada hoje em dia pelo apelo ao audiovisual, ou a ideia de que um livro se trata de produto supérfluo, longe de constituir prioridade num orçamento pessoal ou familiar já apertado. Particularmente no nosso ambiente, acrescem-se a essas o problema da divulgação e da distribuição. Mesmo as editoras locais/regionais, que publicam a maioria dos nossos autores, contam somente com as redes sociais para divulgação do seu produto. Livrarias estão virando coisa do passado, e a venda pela internet, que ganhou musculatura com a pandemia, depende de organização do tipo empresarial para não se sucumbir às exigências que regulamentam a atividade. É necessário que se organize por aqui uma rede de distribuição eficaz, o que, aliás, se vem pretendendo fazer há não pouco tempo.
Quais são suas referências literárias?
G: Penso que há referências que integram um fundo comum, por constituírem espécie de pilares da cultura literária. Refiro-me a um Homero, um Cervantes, um Dante, um Camões, um Balzac, um Dostoievski. Particularmente refiro Camilo Castelo Branco, Machado de Assis, Eça de Queiróz, Joseph Conrad, Josué Montello, Jorge Amado, Emily Bronte, Manoel Bandeira, Carolina Nabuco, Renato Pacheco, Reinaldo e Luiz Guilherme Santos Neves. Tenho lido muito ultimamente o espanhol Arturo Pérez-Reverte, o carioca Alberto Mussa e um escritor cabo-verdiano chamado Germano Almeida, cujas temática e estilo percebo que acabarão por me influenciar de alguma maneira. Ainda entre os contemporâneos, a escrita doce das nossas damas-da-pena Bernadete Lira e Neida Lúcia Moraes e a lírica de Matusalém Dias de Moura. Procuro manter-me atualizado com os catálogos das editoras locais, que cavam muita coisa interessante entre os novos autores do Espírito Santo.
Lida bem com as críticas?
G: Numa certa altura da vida conseguimos discernir quando as críticas, que são inevitáveis pelo simples fato de realizar-se algo, têm um qualquer fundo pessoal. Estas não me interessam. As que se referem à atividade em si, ou o seu produto, devem ser ouvidas e meditadas, no interesse do constante aperfeiçoamento, pois na maior parte das vezes nos ajudam a enxergar as coisas de uma outra maneira. Claro, trata-se de um exercício árduo, muitas vezes até de ascese rs
Está trabalhando em algum livro no momento?
G: Paralelamente à escrita de uma tese de Doutorado tenho no notebook um texto ficcional que ainda não se decidiu se se tratará de novela ou romance. Tenho coligido crônicas, a maioria inéditas, que devem ser reunidas futuramente num volume para publicação. Vamos ver o que me permitirá a agenda.
O que seria de sua vida sem as letras?
G: Creio que me tornei no que sou graças às letras. Desde as composições na banda Urublues, que integrei e para que escrevia canções, até a expressão atual dos meus dias. Como disse, minha atividade profissional se consolida, na sua maior parte, por meio da palavra escrita. Ademais, um número significativo das minhas amizades se movimenta no meio literário, e atualmente (máxime nesses tempos de pandemia) grande parte do meu lazer está ligado a elas.
Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:
G: Leia, leia, leia. Só depois comece a escrever. Então sente e escreva. Releia o que escreveu. Corte. Reescreva. Leia para alguém. Reescreva. Corte. Releia. Desapegue e finalize. Vá descobrindo o que funciona para você nesse processo de produção: a necessidade ou não de planejamento da trama, a fixação de uma meta a ser alcançada por dia de trabalho, o estabelecimento de uma rotina de escrita. Crie seus próprios rituais de escrita. E, na medida do possível, procure frequentar grupos de criação e de discussão literária. Boa sorte.
Getúlio Marcos Pereira Neves (Rio de Janeiro, 1964). Magistrado e escritor. Doutorando em História pela Universidade Federal do Espírito Santo. Mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa. Criado em Colatina/ES, às margens do Rio Doce, reside em Vila Velha/ES. É membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Ocupa a cadeira 33 da Academia Espírito-santense de Letras e a de mesmo número na Academia de Letras de Vila Velha. Integra como associado os quadros do PEN Clube do Brasil. Membro correspondente de vários institutos históricos e geográficos estaduais e de várias academias municipais de letras do Espírito Santo. Detém a comenda Rubem Braga do Governo do Estado do Espírito Santo por sua contribuição à cultura capixaba, e a de mesmo nome da Assembleia Legislativa do Espírito Santo por sua atividade literária. Ultimamente vem escrevendo com regularidade para o Jornal de Letras, do Rio de Janeiro. Além de títulos sobre Direito e História, tem também publicados: Blues, Sonetos e Canções (2005); Estudos de Cultura Espírito-santense, I (2006) e II (2016); Memória Repartida (2014); Périplo a Norte de Tudo (2017); Manhosa Escrita: Miguel Depes Tallon - Vida e Obra (org. 2017); Breves Notas Quase-literárias (2019) e Poemário-Mirim de Pertinências Várias (2020).
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