"a-maior-função-do-homem-no-mundo-é-transformar-se-em--literatura" - Reinaldo Santos Neves

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Entrevistando Contemporâneos & Independentes: Latinidades & Representatividade - Marcio Markendorf

 




"Quando você cresce carente de imagens de referência, com as quais possa se identificar, isso pode criar uma fratura na subjetividade e certa fragilidade na autoestima. Então, quando penso na cena contemporânea, é inegável o impacto que essas ações editoriais produzem sobre os sujeitos LBGTQIAPN+, que agora não precisam apenas se espelhar no amor romântico cisheterossexual.

Marcio Markendorf


Como a literatura entrou em sua vida?

Marcio: Eu gostava muito de ler quando criança, meus pais tinham uma biblioteca razoável, com exemplares adquiridos do antigo Clube do Livro. Comecei a rabiscar alguns poemas por volta dos nove anos e publicava-os no caderno infantil do Correio do Estado, em Campo Grande.

Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor(a)?

Marcio: Sem a presença constante da leitura na minha vida seria muito difícil criar uma arquitetura autoral. Criação precisa de alimento, de repertório. Quando comecei a escrever, estava muito inspirado pelo estilo das pessoas que eu lia e com as quais me identificada em termos de projeto de arte. Com o tempo fui procurando buscar meu próprio estilo.

Consegue viver de literatura?

Marcio: Creio que, assim como muitos outros colegas de ofício, é difícil viver de literatura no Brasil. A maior parte dos escritores possui o tal “emprego de verdade”, aquele que paga as contas, e escreve literatura como guerrilha. Tive quatro obras publicadas por editais de incentivo à cultura, mas o cachê recebido é algo simbólico, o maior investimento está direcionado em produzir um projeto que possa chegar ao público de forma gratuita. E nas publicações por editoras independentes, como boa parte dos contratos, recebemos de direitos autorais dez por cento do número da tiragem, que fica em uma média de 100 exemplares. Caso haja uma nova reimpressão, recebemos em valor-livro de novo. Não é rentável, mas é prazeroso.

Em um post sobre seu livro ‘A lua fantasma’ no site miradajanela.com escreveram: “A obra, publicada pela editora Hecatombe, integra a Coleção Pajubá, dedicada às autorias LGBTQIAPN+ do cenário contemporâneo.”. Qual a importância de dar espaço a este tipo de publicação? Você consegue dimensionar o impacto dessas ações editoriais no cenário nacional?

Marcio: Em um cenário que ainda perpetua um imaginário cisheteronormativo e tem o mercado editorial dominado por escritores/as heterossexuais, é muito importante criar fissuras e tensionamentos no fluxo hegemônico ao incluir outras representações e representatividades. Quando você cresce carente de imagens de referência, com as quais possa se identificar, isso pode criar uma fratura na subjetividade e certa fragilidade na autoestima. Então, quando penso na cena contemporânea, é inegável o impacto que essas ações editoriais produzem sobre os sujeitos LBGTQIAPN+, que agora não precisam apenas se espelhar no amor romântico cisheterossexual.

"No meu tempo de leitor, só se conhecia Caio F. como alguém que escrevia contos gays porque era o único com algum reconhecimento da academia e que foi publicado por grandes editoras. Eu li e reli Caio e de algum modo, aquele modo cinematográfico, cheio de referências intertextuais, me capturou.

Marcio Markendorf

Qual a maior dificuldade que encontra para chegar ao público leitor?

Marcio: Para atingir o público é preciso ter uma boa conjuntura de fatores, desde um bom plano de divulgação a um grande investimento de marketing. Editoras hegemônicas do mercado conseguem ter maior distribuição e, consequentemente, maior projeção de seus autores. Escritores da cena independente precisam fazer um esforço maior para fazer a obra chegar até o conhecimento das pessoas.

Quais são suas referências literárias?

Marcio: Eu tenho em alta conta escritores como Caio Fernando Abreu, Ana Cristina Cesar, Clarice Lispector, João Gilberto Noll, Marcelino Freire, Sylvia Plath.

Na orelha do seu livro ‘A lua fantasma’ Flávio Adriano Nantes diz que ele é “...um hino de oblação a Caio Fernando Abreu”, um dos grandes representantes abertamente gay da literatura brasileira contemporânea. Eu me senti muito representado ao ler o seu livro, queria saber de você, como foi escrevê-lo e qual a importância de Caio na sua formação como leitor e consequentemente como escritor?

Marcio: No meu tempo de leitor, só se conhecia Caio F. como alguém que escrevia contos gays porque era o único com algum reconhecimento da academia e que foi publicado por grandes editoras. Eu li e reli Caio e de algum modo, aquele modo cinematográfico, cheio de referências intertextuais, me capturou. Não é à toa que brinquei com a ideia de romance-móbile que aparece em “Os dragões não conhecem o paraíso”. O conto que dá título ao meu livro, “A lua fantasma”, é inegavelmente um pastiche estrutural de contos do Caio. Quando li “Morangos mofados” pela primeira vez, sabia que queria escrever com aquela potência e de um modo que as pessoas pudessem se reconhecer, como talvez tenha acontecido com você.

Lida bem com as críticas?

Marcio: No campo da criação artística, acredito eu, é preciso estar de coração aberto às críticas, só assim você consegue se aperfeiçoar. Obviamente as pessoas preferem o elogio à crítica, mas entender o que não está funcionando em termos de narrativa ajuda você crescer seus ossos e ir mais fundo.

Como está sendo o retorno (feedback) das leituras?

Marcio: Até o momento tenho tido retornos muito positivos. Às vezes alguém me manda mensagem e diz que se identificou demais com tal personagem ou que tal história parecia sobre a vida dele. Bem, esse era o objetivo desse livro, que a experiências narradas pudessem ter algo sobre como era a vida gay nos anos 1990.

O que seria de sua vida sem as letras?

Marcio: Hoje já não consigo me imaginar sem escrever. No começo, quando comecei a publicar textos, via blog, lá no início dos anos 2000 e o começo da popularização da internet, eu não me sentia escritor por duas razões: primeiro, porque se você escrevia em blog era chamado apenas de ‘blogueiro’, o que dizia que você era um escritor de terceira categoria; segundo, porque a materialidade do livro parece que confere esse status de escritor, algo que o virtual por si só não dá conta. Quando veio o primeiro livro publicado, em 2019, comecei uma vida de escrita/escritor que não vai parar mais.


Uma pergunta um pouco mais pessoal: como foi sua descoberta enquanto homem gay, seus desafios e dulçores com a própria comunidade e como esse caminho lhe ajudou na preparação do livro ‘A lua fantasma’?

Marcio: Eu cresci em Campo Grande/MS, uma capital bastante conservadora, desenhada em uma masculinidade bruta e de estilo cowboy. Então a autodescoberta da sexualidade não foi um processo fácil, especialmente porque as imagens de referência que a cultura de massas trazia eram a da “bicha louca” ou da “travesti", ou seja, ou você seria motivo de riso dos outros ou seria alvo de violência de diversos tipos. Como ninguém queria esse tipo de vida para si – ainda mais com as narrativas estereotipas do gay que morre solitário, de doença ou de assassinato –, o peso dos armários deve ter afundado um pouco o terreno de Campo Grande. Tentei captar um pouco o espírito daquele lugar em “Lá, na cidade pecuária”, com a fictícia cidade de Boi Grande, com muitas passagens autoficcionais, como o primeiro beijo e o primeiro amor.

Está trabalhando em algum livro novo no momento?

Marcio: Agora em julho lançarei um novo projeto, escrito com mais cinco outros artistas, que reúne diferentes linguagens, tais como o verso, a prosa, a fotografia, a colagem, a ilustração, os quadrinhos, a cianotipia. É um livro multiautoral e multiartístico chamado “Imagenações”.

Na página de pré-venda do seu livro há um trecho da descrição que fala: “O projeto ficcional “A lua fantasma” tem como leitmotiv a representação de personagens homossexuais que enfrentam seus horrores íntimos...”. Você consegue ver hoje uma significativa representatividade na literatura se tratando da comunidade LGBTQIAPN+ no geral? Acha que com seu livro conseguiu atingir o que queria?

Marcio: Creio que não apenas na literatura, mas o cinema e o streaming têm colaborado enormemente para criar novas narrativas para comunidade LGBTQIAPN+, distantes daquelas que mencionei há pouco, com fim trágico. É curioso, por exemplo, como uma série como “Heartstopper”, que é direcionada para um público mais jovem, tenha emocionado tantas pessoas da minha geração. Muitos amigos disseram que se tivessem visto alguma história como essa no passado, não teriam enfrentado tanto drama e medo, percepções com as quais concordo. Nesse sentido, penso que meu livro tem um traço que arriscaria chamar de ‘documental’ porque expressa os horrores de ser gay naquela fatia temporal dos anos 1980/1990.

Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Marcio: Leia sempre, leia muito, entenda que a primeira versão de um texto é sempre um rascunho a ser maturado, aprenda a ter disciplina para escrita e estabelecer um método de disciplinar a criatividade.









Marcio Markendorf é professor, pesquisador e escritor. Leciona no Curso de Cinema e no Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor da novela “Soy loca, Lorca, feito um chien no chão” (Urutau, 2019) e dos livros de contos “A lua fantasma” (Hecatombe, 2023) e “O sonhos perturbados de Juliano Adrián” (Edição do Autor, 2023), este último financiado pelo Fundo Municipal de Cultura de Florianópolis. Em parceria com Adriano Salvi, publicou o livro de mininarrativas “Microcontando” (Caiaponte Edições, 2019) por meio da lei de incentivo à cultura da Fundação Cultural de Balneário Camboriú. Foi contemplado no prêmio Elisabete Anderle de incentivo à cultura em 2020 e publicou o livro de microcontos “Ainda estavam lá”, com André Ricardo Aguiar e Adriano Salvi (Edição do autor, 2021). Publicou “Imagenações” (Edição do Autor, 2024), um livro-objeto multiautoral, ao lado de Andréa C. Scansani, Kristel Kardeal, Lucas Gabriel Soares, Milena Fernandes e Nílbio Thé, projeto artístico financiado pelo prêmio Elisabete Anderle de incentivo à cultura de 2023.

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