"a-maior-função-do-homem-no-mundo-é-transformar-se-em--literatura" - Reinaldo Santos Neves

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Virgínia Mordida [RESENHA]

 


“Não se associe com gente à toa. Levanta dessa mesa, Virgínia, isso não é enredo pra você.” – Pág. 92

Virgínia é um galho longe da árvore, distanciada por Henrí, um tóxico amor – se é que podemos chamar de amor – que a faz secar lhe tirando o pulsar de suas veias-caule que a ligava à sua família e amigas.

“Minha mãe vive falando que temos de enfeitar o corredor da memória para lembrar que somos livres, senhoras e senhores dos nossos oris, com a permissão dos nossos orixás.” – Pág. 16

‘Virgínia Mordida’ de Jeovanna Vieira tem uma narrativa leve mesmo com uma história marcada por violências, é um dos livros que mais me tirou do chão este ano. Fui passando as páginas, levado por capítulos curtos, de uma forma tão fluida que nem percebi o fim se aproximando.

“Meço a extensão dos sorrisos ou o volume das gargalhadas que poderiam disparar combate. O que me faria gargalhar, senão ele? Me calar acabou sendo a estratégia mais eficaz na tentativa de seguir caminhando com Henrí, circundando esse abismo.
Todo dia eu sigo aguentando um pouco mais.” – Pág. 144

O livro é permeado de representatividade; com referências afro-brasileiras, menções aos orixás e a religião, a diáspora, fala muito sobre memória e ancestralidade. O feminismo aqui representado em mulheres se apoiando além do sangue, irmãs por Benedita, enfrentando o patriarcado em forma do ‘amor’ idealizado, mas não só.

Foi cedendo cada dia mais que a personagem principal vai se descolando de suas raízes e da árvore que te protegia, te dava a firmeza que todo corpo precisa para viver.

“[...]amar é menos se encontrar com o outro e mais não se perder de si.” – Pág. 146

O “romance galopante, sem rodeios. Nu, cru” que fala Andréa Del Fuego traz as memórias da dor, sons de um corpo se despedaçando. Corpo-galho esse rasgado por xingamentos, pressão à maternidade, controles, um corpo podado por todos os lados. É assim que caminha a história de Virgínia seguindo a rota de outros corpos-galhos, infelizmente.

Mas neste romance o fim é um pouco diferente, para encerrar digo apenas mais uma coisa: 

Leia Jeovanna.


sábado, 16 de novembro de 2024

Tengo miedo torero [RESENHA]

 


“Pero se contuvo; no podía aplicar en el amor las lecciones sucias de la calle.” - Pág. 34

Uma travesti, guerrilheiros, um ditador, um atentado e um amor. Esses são os planos de fundo do único romance de Pedro Lemebel.

“[…]ellos estaban de acuerdo con tu gobierno, porque era uno de los pocos países que te admiraban por haber derrotado al marxismo.” - Pág. 41

La Loca del Frente, personagem principal do livro e o ‘presidente-ditador’ - em capítulos intercalados - desnudam um Chile ao mesmo tempo repressivo e poético.

“Como si no se supiera que es el único que manda en este país de mierda, donde uno ni siquiera puede comprarse un tocadiscos para escuchar lo que quiere.” - Pág. 79

Depois de uma vida escrevendo suas crônicas sensíveis e ácidas, Pedro nos brinda com esse romance que é uma síntese de seu país pós-ditadura, com pitadas de humor e horror entrega a seus leitores uma obra prima.

“De tanto escuchaste las transmisiones sobre ese tema había logrado sensibilizarse, emocionase hasta vidriar sus ojos, escuchando los testimonios de esas señoras a quienes les habían arrebatado al marido, a un hijo, o algún familiar en la noche espesa de la dictadura. Ahora se atrevía decir dictadura y no gobierno militar[…]” - Pág. 113

Eu conheci o autor tem uns anos, me apaixonei de cara após ler ‘Serenata Cafiola’ e agora esse ‘Tengo miedo torero’ (ambos em espanhol, pois ainda não tem tradução em português) veio para cravar ela na minha lista de escritoras favoritas da vida.

“¿Y qué le iba a hacer?, si en su vida siempre alumbró lo prohibido, en el retangueo amordazado de imposibles.” - Pág. 120

Tengo miedo é puro história chilena, o autor sita vários acontecimentos, entre eles o golpe militar, o assassinato de Allende e a guerra do pacífico. Pedro relembra com maestria as lutas diárias do povo latino-americano.

O que mais gostei do que li dele até hoje é o fato de descobrir cantoras e músicas novas, a autora nos apresenta neste romance, através do rádio da Loca del Frente nomes importantes da música popular e folclórica chilena.

“[…]entre amar y querer hay un mundo de diferencia. Te quiero con tu diferencia. No es lo mismo. Yo por ti, como dice una canción, contaría la arena del mar (con los ojos entornados). Por ti yo sería capaz de matar.” - Pág. 129

O que me leva a mais um apontamento sobre a leitura: a linguagem do livro é quase toda coloquial, a língua das ruas, das vielas, do povo. O que me fez sentir mais próximo das personagens.

“[…]el cuento terminaba de esa manera absurda, Carlos y ella arrancando en dos direcciones opuestas.” - Pág. 166