O parque da irmãs magníficas, Camila Sosa Villada (Tusquets Editores, 2021)
“Meu primeiro ato oficial de travestismo foi escrever, antes de sair na rua vestida de mulher…” - Pág. 10
É no parque que tudo nasce e também é ali que tudo perece.
É neste lugar encantado que brotam as ervas mais daninhas, onde os pássaros cantam, é ali também que as raízes vingam.
“Enquanto isso, éramos índias pintadas para a guerra, bestas preparadas para caçar na noite os incautos nas gargantas do Parque, sempre enraivecidas, embrutecidas até mesmo para a ternura, imprevisíveis, loucas, ressentidas, venenosas.” - Pág. 113
‘O Parque das irmãs magníficas’ é um livro tão bem escrito - e tão fantástico - que eu só fui perceber que tinha acabado, só sai da história, quando parei para escrever essa resenha. Ele tem esse poder de te fundir, leitora, com as personagens e o enredo.
“E, quando fico sozinha, repito seu ritual diante do espelho, provo a roupa, eu também sou um pouco minha mãe. Eu me pinto e vejo o rosto da puta que serei mais tarde no rosto do menino. Eu me olho pelo espelho e me desejo, assim pintada com as pinturas de minha mãe, desejo-me como nunca ninguém me desejou.” - Pág. 60
Um texto com longos parágrafos, mas nenhum pouco cansativo, pelo contrário: é isso que ajuda no fluxo e na construção da boa narrativa de Camila.
O livro intercala, feito costura, o passado e o presente da personagem em uma história bem construída com a linearidade atravessada em um texto encantador, mágico.
“Plaza Áustria, palco de orgias de homossexuais vorazes e perfumados que andam à caça do cadáver do amor, terra de desdentados e maginais, de maltrapilhos e desconjuntados, de mortos e degolados. Mas ela não tem medo de nada, e ele parece um cachorrinho abandonado nas profundezas da noite. E, nessa terra de ninguém, eles selam seu matrimônio.” - Pág. 161
História essa que mostra a personagem Camila e suas ‘irmãs’ travestis tentando sobreviver na selva que é o parque Sarmiento; tão encantado quanto cruel.
O parque é como uma fortaleza para as travestis, é ali que elas se protegem do mundo, é também um lugar das mais inacreditáveis cenas.
“Acontecia que Natalí era a sétima filha homem de sua família e, nas noites de lua cheia, se convertia em lobiscate. Se não cuidássemos dela quando estava assim, depois machucava-se a si mesma, convertia-se em alucinação de bêbados e ração para os noticiários, despertando debaixo das árvores com a roupa aos frangalhos.” - Pág. 97
O livro é inteiro feito de reviravoltas, choques ao leitor desavisado, um terreno movediço do qual coloca pontos de vistas a afundar na lama. É um livro que não aceita pré-conceitos, pois te tira da zona de conforto a cada novo capítulo.
“Abre as cortinas, e a cidade aparece aos nossos pés. A mesma cidade hostil e suja que atravesso pelas noites, a mesma cidade agora resplandecente daqui destas alturas. De alguns pontos privilegiados, penso, Córdoba parece digna.” - Pág. 192
‘O Parque das irmãs magníficas’ de Camila Sosa Villada é sobretudo uma ode à existência, a sobrevivência e a luta.
Um livro que certamente está na minha tradicional lista de ‘melhores leituras do ano’.
GATILHOS: violência sexual, transfobia, racismo, assassinato
Nenhum comentário:
Postar um comentário