"a-maior-função-do-homem-no-mundo-é-transformar-se-em--literatura" - Reinaldo Santos Neves

terça-feira, 16 de maio de 2023

Entrevistando Contemporâneos & Independentes – Eglair Carvalho

 





Como a literatura entrou em sua vida?

Eglair: Fui autodidata em leitura e escrita a partir dos 04 anos de idade. Encontrei jogado na rua o livro Arca de Noé, de Vinícius de Moraes. Olhei para a história e simplesmente, passou a ter sentido para mim. Foi a descoberta do meu mundo de Nárnia. Aos oito anos comecei a escrever um jornal do bairro juntamente com o, hoje, jornalista, Alex Pandine. Criamos também um jornal cultural chamado “Corações e Mentes”. Desde então, não parei de escrever.



Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor?

Eglair: Fundamental. É minha fonte inesgotável de inspiração e ressignificação de quem eu sou. Meus textos são intertextuais. Gosto de conversar com os autores que leio e deixar que minha escrita seja impregnada por outras vozes.



Consegue viver de literatura?

Eglair: Sou professor de português e, ao longo da minha carreira, eu me especializei em literatura. Em minhas atividades de ensino, seja no uso da gramática ou na formação de professores, aproprio-me da arte literária. Nesse sentido, vivo financeiramente das letras. Como escritor, é complicada a sobrevivência financeira. Todavia, minha escrita abriu portas para conhecer outras culturas, pessoas de pensamentos diferentes. É um processo contínuo de aprender e desaprender. Nos tempos de pandemia, sobrevivi graças à literatura, principalmente para manter minha saúde mental.



Qual a maior dificuldade que encontra para chegar ao público leitor?

Eglair: Em primeiro lugar não há, de forma estrutural e estratégica, políticas de fomento à leitura e escrita. Em segundo, as desigualdades sociais históricas em nosso país, tornam o livro um bem de consumo caro. Por fim, acredito que as temáticas que escolho afastam-me de alguns leitores. Por exemplo, em “Diário de Minhas mortes” abordo o abuso sexual infantil. É um tema que a maioria não gostaria que fosse abordado, pois traz à luz o quanto o ser humano é cruel e a sociedade se esconde num véu de hipocrisia.



Quais são suas referências literárias?

Eglair: Muitas. Gosto de textos grotescos como “A metamorfose” de Kafka, da escrita filosófica e psicológica de Clarice Lispector, da simplicidade da música popular e dos textos contemporâneos, é claro. As minhas referências são determinadas pelo projeto literário que eu estiver escrevendo. Gosto de estudar, ler, reler, fazer novas descobertas para, depois, começar meu processo de escrita.



Lida bem com as críticas?

Eglair: Considero-as inevitáveis e preciosas. Nasci na miséria, gay e tímido, muito tímido. Fui forjado por várias formas de críticas desde criança. Sempre aprendo com elas. As positivas eu agradeço, as construtivas eu me apego a elas e as negativas do ponto de vista destrutivo, eu entrego ao Universo.



Está trabalhando em algum livro no momento?

Eglair: Terminei, há pouco, um livro infantil, cujo tema é “A Porta que nasceu torta na cidade só de retas” que aborda a importância de aceitarmos as diferenças e aprender a nos valorizarmos. No momento, estou escrevendo dois projetos “A Feia Acordada”, outa obra infantil que desta vez irá dialogar com as redes sociais e outro livro de Memórias chamado “A escola que me partiu” – nele falo de um ideal de escola que não existe mais, perdemos o encantamento. Agora, sinto o espaço escolar como um ringue de vaidades, violência, ambição e de desumanização.



O que seria de sua vida sem as letras?

Eglair: Não seria. Minha identidade como pessoa, sujeito e cidadão que me tornei foram construídos por elas, as palavras, as letras e os sons que preenchem o rio caudaloso de minha alma.



Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Eglair: Gostaria, primeiro, de quebrar um mito: quem lê bem escreve bem. Não é verdade. Escrever é outra competência, é uma entrega que exige a observação do mundo, a empatia pelas pessoas, uma busca inacabada de nos compreender. Nesse sentido a dica é: simplesmente escreva, reescreva e aprenda o que suas letras estão lhe dizendo.









Produtor cultural. Poeta. Dramaturgo. Cronista. Elaborador de projetos pedagógicos, culturais e de captação de recursos. Escritor de narrativas acerca de memórias afetivas e de diversidade. Membro do Coletivo Diversidade Literária e Co-fundador da Academia Capixaba de Letras da Diversidade. Produção artística: Fagulhas do Tempo - 1991 - esgotado), As loucuras de Leopoldo (Teatro- 1994 - esgotado) . Versos explícitos (poesia - 2003 - esgotado) Desencontros - Teatro 2004) - esgotado) A voz da Felicidade (Monólogo 2006 - esgotado). Diário de minhas mortes (Narrativa de memórias - 2022). A Porta Torta (narrativa infantil - 2023 - inédito). A Escola que me partiu (Crônicas - 2023 - inédito).

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Alguns contos e minicontos de Lacy Ribeiro





TARDE DE AUTÓGRAFOS 



O escritor, devidamente sentado à mesa onde começaria a autografar sua obra, inquieta-se quando vê se aproximar o menino sujo que estende uma folha de papel almaço encardida. 
Lê o cabeçalho: AJUDEM-ME A COMPRAR UMA CAIXA DE VENDER PICOLÉ. 
Segura o queixo com os punhos fechados e desvia o olhar furioso para as ramagens das árvores da pracinha em frente. 
O bem-te-vi pára de cantar. 
O menino pede, então, um exemplar dos livros. 
Indignado, o escrito abraça os livros e dá o ultimatum. 
O menino se retira, tropeçando nos sapatos dos que começam a entrar. 
Aliviado, o escritor arma a caneta para o primeiro autógrafo.



OS BEIJOS 



Quando ele a tomava nos braços e a beijava, ela se diluía e saía de baixo daquele corpo, passava pelo buraco da fechadura e entrava no apartamento ao lado onde os beijos da outra eram incontestavelmente, mais dentro da boca.



(contos do livro 'Contos de Réis' - 1986)



A CEGA 



A moça cega surgia da esquina da farmácia São Lucas tateando o espaço, ajudada pela bengala. Não se viam seus olhos detrás das lentes escuras, mas ela nos percebia e nos desejava bom-dia sorrindo. 
Era comum sermos cutucados pela sua bengala, nas costelas, nas nádegas e nas pernas. Quando ela acertava alguém, pedia 53 desculpas e sorria. O garoto que vendia jornais é que não gostava muito dela, pois, agachado ao lado da pilha de jornais, de vez em quando levava umas bengaladas na cabeça. Quando ele notava que ela se aproximava com o seu toc-toc, levantava-se e colocava-se na defensiva. Se, por acaso, esquecia-se ou distraía-se por qualquer coisa, era acertado em cheio na cabeça. Mas, o pequeno jornaleiro, como os outros, ajudava-a, nas madrugadas chuvosas, amparando -a na calçada escorregadia. 
Era pontual. Chegava às 5:15 e não esperava muito pelo ônibus de Vila Velha. Recusava ajuda na hora de subir e, ágil, embarcava para o trabalho, sorrindo para a vida que lhe oferecia os dias como eternas madrugadas.


AS NAMORADAS


Quando o jorro de luz, saído das portas subitamente levantadas da padaria, as iluminou, elas se separaram e soltaram as mãos. Baixaram a cabeça e arredaram-se para o cantinho escuro da calçada. Voltaram a se aproximar e a dar as mãos, timidamente.
As pessoas as olhavam de soslaio, mostrando, com meneios de cabeça e risinhos debochados, o espanto.
A que ficou na calçada teve um ataque de tosse, talvez pela fumaceira preta do cano de descarga do ônibus que lhe roubara a amada.


(contos do livro 'Avenida República' - 1987)




Lacy Fernandes Ribeiro, poeta, contista, romancista, nasceu em Barra de São Francisco, ES, em 1948, tendo vindo para Vitória ainda jovem, para estudar e trabalhar, como foi o destino de tantos capixabas de sua geração. Era o dia 31 de março de 1964, data em que se iniciava a ditadura militar, que marcaria os vinte “anos de chumbo” nos quais viveríamos a repressão, o medo, a falta de liberdade e que se refletiria na literatura de toda uma geração, de uma forma mais ou menos realista.

Lacy Ribeiro seguia uma cartilha ideológica e literária. Militante da esquerda, filiada ao Partido Comunista do Brasil, foi advogada, secretária de multinacionais, aproveitando “tudo que extrai de suas experiências ombro a ombro com o povo humilde, o que trabalha, o que fica desempregado, o deslembrado dos que dominam”, conforme consta da sua biografia, onde também se lê: “Lacy Ribeiro, escritora maldita, bendita, iluminada, querida por todos e mal entendida por alguns, faz uma literatura diversificada: poesia, contos, crônicas, romances, ensaios, etc” (In: Contos bastardos, 1991)

quinta-feira, 4 de maio de 2023

‘Alguns trocados’: ‘Contos de Réis’ de Lacy Ribeiro (RESENHA)

 



Lacy é fruto da ditadura, chegou em Vitória em 1964, vinda de barra de São Francisco e muito do que lemos em seus textos são relatos de um período de censura e repressão.

Este é seu segundo livro, o primeiro de contos, lançado em 1986, Cátedra Editora (SP) gênero que a consagraria anos mais tarde. ‘Contos de Réis’ é uma seleção de contos e minicontos que grita, delata e escreve contra a tirania da época.

"De longe, podiam-se distinguir a silhueta do cão que abanava o rabo enquanto o amigo lhe afagava a cabeça, e o semblante do homem, refeito por aquela muda confissão de afeto." - Pág. 48   

Junto de Milson Henriques, Amylton de Almeida, Waldo Motta, Fernando Tatagiba, entre outros escritores da década de 80, Lacy Ribeiro integrava a ‘geração marginal’ no Espírito Santo.

Lacy foi assassinada brutalmente Janeiro de 2013 aos 64 anos.

Lacy Ribeiro em seus ‘Contos de Réis’ dá voz sobretudo aos corpos marginalizados, dando o devido protagonismo. Em seus textos enxergamos os meninos de rua, travestis, ambulantes, prostitutas, pedintes, homens e mulheres a margem.

"- O que mais me impacienta são estas moscas... como são imediatistas!" - miniconto 'O moribundo' - Pág. 75

Lacy escreve de forma certeira sobre a crueza da vida, uma escritora que captou vários tipos de personagens das ruas por onde passava. No fim das contas - e de cada conto - ela descreve com precisão de detalhes a desumanização de muitos e a humanidade de poucos.

O amigo, escritor e jornalista, Fernando Tatagiba escreveu: “seus contos certamente revolverão o espírito do leitor lhe deixarão, no canto da boca, um travo de terror, espanto e revolta diante das diversas formas de injustiças sociais.”

A escritora traz também a tona a hipocrisia da ‘tradicional família brasileira’, escancara a verdade do ‘pai exemplar’ que trai a esposa com seu amante jovem, e critica a burguesia, o capitalismo e o patriarcado da sociedade.

Apesar de ser um livro curto, de apenas 75 páginas, é uma obra densa, pesada, e que trata de assuntos pouco explorados antigamente. Textos que são hoje essenciais em rodas de discussões, clubes de leituras, não é um ilvro vazio, pelo contrário, tem muito a agregar na atualidade.

Alguns contos em tons de deboche e ironia ditam o ritmo da leitura, obra considerada “excessivamente realista, crua, às vezes sem ser fácil ou malcuidada” por Francisco Aurelio Ribeiro (AEL, estudioso da literatura feita no Espírito Santo). Textos zombadores da ditadura militar, da burguesia local e até mesmo dos artistas, que se isentavam das discussões importantes que ela (Lacy Ribeiro) traz no livro.