O escritor, devidamente sentado à mesa onde começaria a autografar sua obra, inquieta-se quando vê se aproximar o menino sujo que estende uma folha de papel almaço encardida.
Lê o cabeçalho: AJUDEM-ME A COMPRAR UMA CAIXA DE VENDER PICOLÉ.
Segura o queixo com os punhos fechados e desvia o olhar furioso para as ramagens das árvores da pracinha em frente.
O bem-te-vi pára de cantar.
O menino pede, então, um exemplar dos livros.
Indignado, o escrito abraça os livros e dá o ultimatum.
O menino se retira, tropeçando nos sapatos dos que começam a entrar.
Aliviado, o escritor arma a caneta para o primeiro autógrafo.
OS BEIJOS
Quando ele a tomava nos braços e a beijava, ela se diluía e saía de baixo daquele corpo, passava pelo buraco da fechadura e entrava no apartamento ao lado onde os beijos da outra eram incontestavelmente, mais dentro da boca.
(contos do livro 'Contos de Réis' - 1986)
A moça cega surgia da esquina da farmácia São Lucas tateando o espaço, ajudada pela bengala. Não se viam seus olhos detrás das lentes escuras, mas ela nos percebia e nos desejava bom-dia sorrindo.
Era comum sermos cutucados pela sua bengala, nas costelas, nas nádegas e nas pernas. Quando ela acertava alguém, pedia 53 desculpas e sorria. O garoto que vendia jornais é que não gostava muito dela, pois, agachado ao lado da pilha de jornais, de vez em quando levava umas bengaladas na cabeça. Quando ele notava que ela se aproximava com o seu toc-toc, levantava-se e colocava-se na defensiva. Se, por acaso, esquecia-se ou distraía-se por qualquer coisa, era acertado em cheio na cabeça. Mas, o pequeno jornaleiro, como os outros, ajudava-a, nas madrugadas chuvosas, amparando -a na calçada escorregadia.
Era pontual. Chegava às 5:15 e não esperava muito pelo ônibus de Vila Velha. Recusava ajuda na hora de subir e, ágil, embarcava para o trabalho, sorrindo para a vida que lhe oferecia os dias como eternas madrugadas.
As pessoas as olhavam de soslaio, mostrando, com meneios de cabeça e risinhos debochados, o espanto.
A que ficou na calçada teve um ataque de tosse, talvez pela fumaceira preta do cano de descarga do ônibus que lhe roubara a amada.
(contos do livro 'Avenida República' - 1987)
Lacy Fernandes Ribeiro, poeta, contista, romancista, nasceu em Barra de São Francisco, ES, em 1948, tendo vindo para Vitória ainda jovem, para estudar e trabalhar, como foi o destino de tantos capixabas de sua geração. Era o dia 31 de março de 1964, data em que se iniciava a ditadura militar, que marcaria os vinte “anos de chumbo” nos quais viveríamos a repressão, o medo, a falta de liberdade e que se refletiria na literatura de toda uma geração, de uma forma mais ou menos realista.
Lacy Ribeiro seguia uma cartilha ideológica e literária. Militante da esquerda, filiada ao Partido Comunista do Brasil, foi advogada, secretária de multinacionais, aproveitando “tudo que extrai de suas experiências ombro a ombro com o povo humilde, o que trabalha, o que fica desempregado, o deslembrado dos que dominam”, conforme consta da sua biografia, onde também se lê: “Lacy Ribeiro, escritora maldita, bendita, iluminada, querida por todos e mal entendida por alguns, faz uma literatura diversificada: poesia, contos, crônicas, romances, ensaios, etc” (In: Contos bastardos, 1991)
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