"A partir desses anos é que entendi que eu também poderia escrever “de verdade” e essa suposta “autorização” que entendi existir quando li outras identidades tem a ver com uma serie de ideias que são também construídas no nosso pensamento. Ideias coloniais e normativas.
Natalia Borges Polesso
Natalia: Pela contação de histórias. Morei com meus avós por um período curto da minha infância e o que ficou marcado para mim foram os causos que minha avó contava na hora de dormir. Eu devia ter uns 6 anos, acho que foi ali que eu entendi o que era uma história; que uma pessoa podia contar uma história. Sabe quando a gente toma consciência de algo? Depois disso, outra coisa que me marcou foi ter topado com um livro de poemas na minha casa, isso já com 8 ou 9. Não tinha livros em casa, nem sei muito bem como aquela coletânea foi parar lá, sei que li “A lira do amor romântico”, do Drummond e pensei “hmmm acho que eu também sei fazer esse negócio de poesia”. Lembro bem do sentimento, daí comecei a escrever uns versinhos. Eu não sei dizer se lia pouco ou muito, mas lembro de ser uma pessoa curiosa com livros.
Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor(a)?
Natalia: Fui ter mais acesso a livros na faculdade. Morei muito tempo no interior e, apesar de frequentar a biblioteca pública da cidadezinha, acho que foi mesmo aos 17 anos, quando pude acessar a universidade que comecei a ler mais. Para além das recomendações dos professores, eu já tinha aprendido a explorar os corredores e as estamtes e fui me dedicar a ler o que eu pensava que uma estudante de letras tinha que ler: Shakespeare e a grande literatura ocidental. Digo isso hoje num tom de ironia. Uma das primeiras matérias que fiz na faculdade de Letras se chamava “Literatura Ocidental: da Ilíada à Odisseia”. É claro que essas leituras me formaram e que minha formação acadêmica foi bastante ocidental, branca, em grande parte masculina e hétero. Quando saí um pouco disso, fui encontrando os escritos que realmente amei. Caio, Cortázar, Lygia, Clarice, Marina Colassanti. Mas eu tenho a impressão de que foi só a partir de 2009, quando entrei no mestrado para trabalhar com gênero e literatura e 2010 quando também comecei a ler mais pessoas contemporâneas (e claro que nos anos subsequentes houve uma grande mudança no cenário editorial) é que minha construção como autora foi se indicando mais como um caminho. A partir desses anos é que entendi que eu também poderia escrever “de verdade” e essa suposta “autorização” que entendi existir quando li outras identidades tem a ver com uma serie de ideias que são também construídas no nosso pensamento. Ideias coloniais e normativas. Eu nunca tinha aventado ser escritora, nem mesmo depois que publiquei meu primeiro livro. Eu queria ser médica, só que os impedimentos financeiros me levaram para a docência. E que bom. Hoje não dou médica, mas sou doutora.
Consegue viver de literatura?
Natalia: Sim. Porque trabalho em várias frentes. Se tu me perguntar se consigo viver de direitos autorais, a resposta é não. Mas eu sou professora e pesquisadora em um programa de pós-graduação, atualmente (2023-2024) tenho uma bolsa CNPq/FAPERGS e também recebo alguns convites pagos para feiras, palestras, juris e outros eventos, dou oficinas e cursos, faço leituras críticas e traduções. Enfim, são muito os trabalhos que uma pessoa tem que exercer para viver de literatura. E não é só aceitar o convite e realizar o trabalho em si. É responder os emails, fazer a agenda, organizar a lista infinita de documentos que cada evento pede a depender do edital que o contemplou, fazer os envios, fazer a notas fiscais, ser secretária, assistente, contadora, realizar uma burocracia imensa que por vezes até nos impede de escrever. Mas é isso. Vive-se de literatura, na precariedade da autonomia e do fazer freela, sem direito a aposentadoria, seguridade social, nada disso. Eu acho que a profissão de escritor/a é um tanto recente, entende? Antes quem poderia se dar ao luxo de escrever, talvez já tivesse um outro trabalho que sustentasse esse vício horrendo que é a escrita. Ou talvez fossem herdeiros. E como eu não sou herdeira nem ganhei na mega ainda, a peleja é grande.
Em uma entrevista sua - para o canal Bondelê no Youtube - você diz: “a gente precisa furar essa grande mídia preguiçosa para que leiam (as margens, o que se produz na periferia)”, você criticava e com razão quando te divulgavam falando que uma “desconhecida superou Veríssimo e Fonseca”. Na época você tinha ganhado o Prêmio Jabuti com Amora. Queria saber se ainda pensa igual? Viu alguma mudança na mídia literária brasileira nesses anos?
"Não dá pra fazer crítica literária com ferramentas supostamente universais que foram pensadas a partir de branquitute, cisheteronormatividade, regionalismo sudestino, urbano, etc. É meio burro quando não mau-caráter.
Natalia Borges Polesso
Natalia: Penso igual porque as coisas não mudaram tanto assim. Eu acho que alguns de nós escritores/as temos mais trânsito, porque, o mercado editorial também mudou assim como a relação das pessoas leitoras com a leitura e com as pessoas autoras. E também acho que eu tenho mais trânsito, como escritora. Penso que há pessoas mais plurais fazendo crítica sim, mas, de modo geral, a crítica e a universidade ainda têm uma grande lacuna de letramento estético e teórico. Tudo é muito estruturalista e pós-estruturalista. As ementas, e digo isso como professora, pouco mudaram. Tenho muitos alunes que me dizem “a primeira vez que li algo decolonial foi contigo”. Acho que poucos são os formadores e educadores, dentro da universidade, que pensam as bases das perspectivas de onde está sendo produzida uma literatura muito viva hoje. Isso cria um abismo de compreensão na leitura. Não dá pra fazer crítica literária com ferramentas supostamente universais que foram pensadas a partir de branquitute, cisheteronormatividade, regionalismo sudestino, urbano, etc. É meio burro quando não mau-caráter. Sempre que faço alguma fala ou palestra em universidades, pergunto como estão as ementas dos cursos. Quando digo que as coisas não mudaram tanto assim, é porque as respostas me dizem isso. Acho que o que falta a nossa crítica é certo letramento estético, formação mesmo, deslocamento de si. Ela ainda está fixada em certas imagens e construções de identidade, sentido e discurso de quando a literatura era pouco plural e isso a pesquisa do perfil do autor e do escritor, da professora Regina Dalcastagne, mostra, apesar do seu viés. Mas aqui eu poderia escrever um artigo inteirinho. Isso é uma reflexão minúscula que deixo.
Quais são suas referências literárias?
Natalia: Há escritores e escritoras que marcaram minha formação. Alguns já citei Caio, Cortázar, Lygia, Clarice, Marina Colassanti, Drummond, poderia adicionar, Virginia Woolf e Oscar Wild. Mas acho que minhas referências hoje são mais as pessoas que escrevem comigo contemporaneamente. E de algumas delas tenho a sorte de ter a amizade. Por exemplo, acompanho há tempos o trabalho de cronistas e dramaturgas como Cidinha da Silva e Paloma Franca Amorim, gosto muito dos contos da Veronica Stigger e do Leo Tavares, romancistas como Luciany Aparecida e Jeferson Tenório me comovem demais. Recentemente, li o Ressuscitar Mamutes, de Silvana Tavano e gostei demais, assim como o livro de poemas Rosameniniho, de Marcondes FH. Enfim, a literatura contemporânea brasileira pulsa. Eu poderia citar aqui também as estrangeiras que tenho lido como a ganhadora do Nobel, Han Kan, ou as latino-americanas como Mariana Enriquez, Brenda Lozano. Acho que aprendo muito lendo quem está escrevendo junto comigo neste tempo.
No prefácio da nova edição do ‘Amora’ você diz “Eu queria...explorar os destroços. Escrever sobre as coisas que estavam submersas em mim, sobre aquilo que eu tinha perdido, sobre aquilo que eu nem sabia que existia dentro de mim. Foi isso que eu busquei.” Após todos esses anos que se passaram, com os feedbacks e releituras – se é que houveram – você acha que atingiu o que queria com o Amora? E o que Natalia que escrevia o livro encontrou no processo?
Natalia: Eu acho que sim. Sou muito feliz e orgulhosa dos caminhos do Amora. É um livro que me emociona nos encontros que tenho com as leitoras. Desde sua publicação, até hoje, encontro pessoas que me contam como foram profundamente tocadas pelo livro, não raro essas pessoas ficam emocionadas ao me contar. Eu acho que isso diz do alcance e do poder de um livro. Não é tanto sobre quantas pessoas, mas quanto na pessoa, entende? A Natalia que escreveu o livro continua se surpreendendo.
O que seria de sua vida sem as letras?
Natalia: Bah, não sei. Não quero nem tentar fazer esse exercício de imaginação.
Sem pressão: está trabalhando em algum livro novo no momento?
Natalia: Estou sempre trabalhando em algum livro. Este ano, retomei Penelope Obscura, um romance que comecei em 2020, mas que deixei de lado para terminar o Condições ideais e o Foi um péssimo dia. Ele faz parte de uma trilogia ecológica que comecei com A extinção das abelhas. Só que, neste momento, estou dando mais atenção ao meu grupo de estudos e à pesquisa do pós-doc que termina em breve.
Natalia Borges Polesso é escritora e tradutora. Publicou Amora (2015), Controle (2019), Corpos secos (2020), A extinção das abelhas (2021) e Foi um péssimo dia (2023), entre outros. Ganhou e foi finalista de diversos prêmios literários, como Jabuti, São Paulo, Açorianos e Minuano. É pesquisadora de pós-doutorado na PUCRS, com bolsa CNPq/FAPERGS. Sua pesquisa está centrada no conceito de Antropoceno e visa observar as relações coloniais e a ecologia, na literatura brasileira contemporânea. Em 2024, volta aos contos com Condições ideais de navegação para iniciantes.
Lida bem com as críticas?
Natalia: Sim. Acho que lido bem, mas não deixo de ter a minha crítica sobre a crítica hahaha, como já disse. Mas essa é a Natalia pesquisadora e professora falando. Perguntas ou comentários horrorosos da crítica já me levaram a lugares muito bons da pesquisa. Por exemplo, uma vez, um entrevistador me perguntou se com Amora eu queria “escancarar o universo lésbico”. São tantas camadas de bizarrice numa pergunta dessas que não dá pra não responder com senso crítico. Primeiro a escolha do verbo escancarar, que é violento no contexto; depois a pressuposição da existência de um universo lésbico, que eu deveria ser capaz de mostrar melhor, porque decerto, ele e outras pessoas não conseguiriam ver. Estou certa de que muita gente não vê problema na pergunta, assim como acho que o próprio entrevistador não viu, mas isso não quer dizer que os problemas não estão lá. Respondi a ele com humor que se houvesse um universo lésbico, eu estaria lá e não neste compartilhado.
Como está sendo o retorno (feedback) das leituras do seu livro novo, o ‘Condições ideais de navegação para iniciantes’?
Natalia: Das pessoas leitoras está sendo muito bom. Acompanho com entusiasmo. Além disso, até o momento saíram, duas resenhas e comentários no youtube, os dois bem positivos. Livros de contos não são muito comentados pela grande mídia, então não to esperando muita coisa.
Natalia: Sim. Acho que lido bem, mas não deixo de ter a minha crítica sobre a crítica hahaha, como já disse. Mas essa é a Natalia pesquisadora e professora falando. Perguntas ou comentários horrorosos da crítica já me levaram a lugares muito bons da pesquisa. Por exemplo, uma vez, um entrevistador me perguntou se com Amora eu queria “escancarar o universo lésbico”. São tantas camadas de bizarrice numa pergunta dessas que não dá pra não responder com senso crítico. Primeiro a escolha do verbo escancarar, que é violento no contexto; depois a pressuposição da existência de um universo lésbico, que eu deveria ser capaz de mostrar melhor, porque decerto, ele e outras pessoas não conseguiriam ver. Estou certa de que muita gente não vê problema na pergunta, assim como acho que o próprio entrevistador não viu, mas isso não quer dizer que os problemas não estão lá. Respondi a ele com humor que se houvesse um universo lésbico, eu estaria lá e não neste compartilhado.
Como está sendo o retorno (feedback) das leituras do seu livro novo, o ‘Condições ideais de navegação para iniciantes’?
Natalia: Das pessoas leitoras está sendo muito bom. Acompanho com entusiasmo. Além disso, até o momento saíram, duas resenhas e comentários no youtube, os dois bem positivos. Livros de contos não são muito comentados pela grande mídia, então não to esperando muita coisa.
O que seria de sua vida sem as letras?
Natalia: Bah, não sei. Não quero nem tentar fazer esse exercício de imaginação.
Sem pressão: está trabalhando em algum livro novo no momento?
Natalia: Estou sempre trabalhando em algum livro. Este ano, retomei Penelope Obscura, um romance que comecei em 2020, mas que deixei de lado para terminar o Condições ideais e o Foi um péssimo dia. Ele faz parte de uma trilogia ecológica que comecei com A extinção das abelhas. Só que, neste momento, estou dando mais atenção ao meu grupo de estudos e à pesquisa do pós-doc que termina em breve.
Eu acho que já li quase todos os seus livros e sempre me pego numa arapuca, poética sim, mas também forte porquê não? A minha dúvida, e de todos que ainda não leram o ‘Condições ideais de navegação para iniciantes’ é, o que devemos esperar desse livro novo?
Natalia: Esteticamente, uma junção de Recortes para álbum de fotografia sem gente e Amora. Contos mais longos em comparação aos dos livros mencionados, mas com a mesma carga dramática e tentativa de tensionamento de imagens.
Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:
Natalia: Escreva. Não tem outro jeito, escreva muito. Escreva com e sem propósito. Faça exercícios de escrita. Compartilhe seus escritos com um grupo de escrita. Faça alguma oficina legal. Ouça as críticas dessas leituras, esse é o momento de trabalhar o texto e repensar as decisões. Leve tudo em consideração, ponha seu trabalho e sua escrita em dúvida, mas não de maneira depreciativa, e sim como perspectiva mesmo. Depois decida se vai seguir ou não com a ideia.
Natalia: Esteticamente, uma junção de Recortes para álbum de fotografia sem gente e Amora. Contos mais longos em comparação aos dos livros mencionados, mas com a mesma carga dramática e tentativa de tensionamento de imagens.
Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:
Natalia: Escreva. Não tem outro jeito, escreva muito. Escreva com e sem propósito. Faça exercícios de escrita. Compartilhe seus escritos com um grupo de escrita. Faça alguma oficina legal. Ouça as críticas dessas leituras, esse é o momento de trabalhar o texto e repensar as decisões. Leve tudo em consideração, ponha seu trabalho e sua escrita em dúvida, mas não de maneira depreciativa, e sim como perspectiva mesmo. Depois decida se vai seguir ou não com a ideia.
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