"a-maior-função-do-homem-no-mundo-é-transformar-se-em--literatura" - Reinaldo Santos Neves

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Levante (RESENHA)

 

Levante, Henrique Marques Samyn (Editora Jandaíra, 2020)



“Percebemos em ‘Levante’ uma poética de alteridade e autoridade que a todo tempo confronta perspectiva patriarcal e branca de “dar voz aos subalternizados “. - trecho da introdução por Cidinha da Silva.

Na primeira parte o livro fala do início da jornada, com temas como: a animalização, a tortura, doenças, é a parte mais pesada do livro, porém, no último poema chamado ‘diáspora’ o autor, num canto de liberdade, nos convida à luta.

“Não esqueçais
que de nossa resistência
nasceu vossa liberdade[…]” - Pág. 25

O livro é uma breve epopeia das histórias dos negros e negras escravizadas, contando suas dores e desejos, sentimentos e vontades, em cada poema a síntese de um tempo e em cada verso a força da resistência de um povo.

“Seus herdeiros, resistimos -
nós, os filhos da senzala.” - Pág. 28

‘Levante’ conta também sobre seus heróis, deuses e deusas, que lutaram e que agora servem como forças para as futuras batalhas. Para além do embate, a parte III: ‘Ancestralidade’ versa poemas de liberdade, com suas lindas homenagens aos que vieram antes.

“Tem a bênção dos bons deuses
quem mata seus senhores.” - Pág. 49

Apesar de ser um livro de poemas ele forma um círculo narrativo perfeito com início, meio e fim, começando aprisionados e encerrando livres. Com ilustrações que permeiam todo o livro - e que conversam com a história - deixando-o mais enriquecedor.

“[...] que em nossas casas nasçam mil quilombos.” - Pág. 79

Através dos versos de Henrique Marques vemos que a mesma história que se repete; a cada século, a cada esquina, a cada página, é a mesma que teima em resistir.

“Nossa raça se alimenta de esperança.” - Pág. 97

Da parte VI do livro, intitulada ‘Liberdade’ retiro o trecho: “[...]guerreiras e guerreiros triunfantes/ergamos as cabeças dos senhores/nas pontas de mil lanças afiadas/que as gerações vindouras as contemplem.” - Pág. 101 do poema ‘VIII’ um dos que eu mais gostei.




Super recomendo a leitura,
espero que tenha gostado,




Até a próxima!

sábado, 18 de fevereiro de 2023

O Parque das irmãs magníficas [RESENHA]

 

O parque da irmãs magníficas, Camila Sosa Villada (Tusquets Editores, 2021)



“Meu primeiro ato oficial de travestismo foi escrever, antes de sair na rua vestida de mulher…” - Pág. 10

É no parque que tudo nasce e também é ali que tudo perece.
É neste lugar encantado que brotam as ervas mais daninhas, onde os pássaros cantam, é ali também que as raízes vingam.

“Enquanto isso, éramos índias pintadas para a guerra, bestas preparadas para caçar na noite os incautos nas gargantas do Parque, sempre enraivecidas, embrutecidas até mesmo para a ternura, imprevisíveis, loucas, ressentidas, venenosas.” - Pág. 113

‘O Parque das irmãs magníficas’ é um livro tão bem escrito - e tão fantástico - que eu só fui perceber que tinha acabado, só sai da história, quando parei para escrever essa resenha. Ele tem esse poder de te fundir, leitora, com as personagens e o enredo.

“E, quando fico sozinha, repito seu ritual diante do espelho, provo a roupa, eu também sou um pouco minha mãe. Eu me pinto e vejo o rosto da puta que serei mais tarde no rosto do menino. Eu me olho pelo espelho e me desejo, assim pintada com as pinturas de minha mãe, desejo-me como nunca ninguém me desejou.” - Pág. 60

Um texto com longos parágrafos, mas nenhum pouco cansativo, pelo contrário: é isso que ajuda no fluxo e na construção da boa narrativa de Camila.

O livro intercala, feito costura, o passado e o presente da personagem em uma história bem construída com a linearidade atravessada em um texto encantador, mágico.

“Plaza Áustria, palco de orgias de homossexuais vorazes e perfumados que andam à caça do cadáver do amor, terra de desdentados e maginais, de maltrapilhos e desconjuntados, de mortos e degolados. Mas ela não tem medo de nada, e ele parece um cachorrinho abandonado nas profundezas da noite. E, nessa terra de ninguém, eles selam seu matrimônio.” - Pág. 161

História essa que mostra a personagem Camila e suas ‘irmãs’ travestis tentando sobreviver na selva que é o parque Sarmiento; tão encantado quanto cruel.

O parque é como uma fortaleza para as travestis, é ali que elas se protegem do mundo, é também um lugar das mais inacreditáveis cenas.

“Acontecia que Natalí era a sétima filha homem de sua família e, nas noites de lua cheia, se convertia em lobiscate. Se não cuidássemos dela quando estava assim, depois machucava-se a si mesma, convertia-se em alucinação de bêbados e ração para os noticiários, despertando debaixo das árvores com a roupa aos frangalhos.” - Pág. 97

O livro é inteiro feito de reviravoltas, choques ao leitor desavisado, um terreno movediço do qual coloca pontos de vistas a afundar na lama. É um livro que não aceita pré-conceitos, pois te tira da zona de conforto a cada novo capítulo.

“Abre as cortinas, e a cidade aparece aos nossos pés. A mesma cidade hostil e suja que atravesso pelas noites, a mesma cidade agora resplandecente daqui destas alturas. De alguns pontos privilegiados, penso, Córdoba parece digna.” - Pág. 192

‘O Parque das irmãs magníficas’ de Camila Sosa Villada é sobretudo uma ode à existência, a sobrevivência e a luta.

Um livro que certamente está na minha tradicional lista de ‘melhores leituras do ano’.



GATILHOS: violência sexual, transfobia, racismo, assassinato


terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Entrevistando Contemporâneos & Independentes – Marcela Guimarães Neves

 




Como a literatura entrou em sua vida?

M: A leitura entrou na minha vida de uma forma espontânea, familiar. Meus pais sempre foram grandes leitores. Meu amor pela literatura começou na biblioteca de minha casa. Sou uma privilegiada por ter crescido em um lar repleto de livros.



Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor?

M: Como diz o brilhante escritor e acadêmico Pedro J. Nunes: “Escrever é subproduto da leitura.” O eu autor, em sua autenticidade literária, emerge do acúmulo de boas leituras.



Consegue viver de literatura?

M: Acredito que esse seja o grande sonho de muitas autoras. Eu ainda não tenho essa sorte. Sou mãe, escritora, advogada e servidora pública. Preciso equilibrar os malabares das muitas atividades diárias para conseguir viver e criar meu filho. A literatura é a nutrição de que preciso para enfrentar os leões da minha existência.



Qual a maior dificuldade que encontra para chegar ao público leitor?

M: Preciso compreender melhor os meios de divulgação. Utilizo as redes sociais, mas talvez não de uma forma constante e adequada para os padrões da nossa era digital, virtual e volátil.



Quais são suas referências literárias?

M: Minha primeira grande referência literária foi Gabriel García Márquez. Escrevi uma crônica sobre como o livro “Cem Anos de Solidão” me tornou uma devota da literatura. Depois de ler essa magnífica obra (tinha eu 14 anos à época), tornei-me uma leitora incansável: termino um livro e já começo outro.



Lida bem com as críticas?

M: Lido muito bem. Não dou a mínima para as críticas destrutivas e amo de paixão as construtivas. Elas são peças fundamentais para a evolução da escrita.



Está trabalhando em algum livro no momento?

M: Sim! No momento, estou escrevendo um novo livro de poemas.



O que seria de sua vida sem as letras?

M: Um viver na maré baixa de um cotidiano desprovido da luz do conhecimento, longe da lua cheia da sensibilidade artística, distante do brilho da criatividade humana.



Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

M: Leia incessantemente e com um olhar de leitor profissional.







Marcela Neves é mãe, pernambucana, advogada, escritora, servidora pública, ativista cultural, membro da Comissão Especial de Direito Cultural e Propriedade Intelectual da OAB-ES, mestra em Direito Público pela Université Paris II – Panthéon/Assas, autora do site “Vida Livresca (www.vidalivresca.com.br) e do romance “A Noiva de Paris”.

Instagram: marcelagneves7 
E-mail: marcelagneves@hotmail.com


sábado, 11 de fevereiro de 2023

Encontro você no oitavo round (RESENHA)

 

Encontro você no oitavo round - Caê Guimarães (Editora Record, 2020)




“É o cafetão que restou no epílogo da minha participação na cena.” - Pág. 17

No romance vencedor do Prêmio Sesc de Literatura de 2020 acompanhamos a vida de Cristiano, ex-jornalista e ex-poeta, que se dedica atualmente a seu fim de carreira como pugilista.

“Mas, perceba, uma coisa aproxima boxeadores de escritores. Ambos caminham nas sutilezas das bordas do abismo. Ambos flertam com a queda e só se tornam legítimos ao dispensar a rede de segurança.” - Pág. 27

O livro, apesar de curto, é bastante denso, cheio de referências literárias; com críticas diretas ao capitalismo, a pobreza , aos crimes ambientais, ao governo e ao próprio mercado literário. É o tipo de literatura que eu gosto: aquela que incomoda, que tira o leitor da sua zona de conforto.

“[...] os moradores de rua que em meio à lama mais absoluta conseguem dividir restos de comida com cães vira-lata[…] Para o horror da classe média furiosa, cenas cada vez mais democratizadas em toda a área urbana.
— Nada mais está dentro ou fora[…] Tudo é dentro. Estamos todos dentro da jaula.” - Pág. 40

Com um texto fluido, quase uma prosa poética, e um narrador inteligente, Caê Guimarães nos entrega logo de cara uma decisão muito difícil quanto o Protagonismo e/ou antagonismo da personagem principal: um boxeador que ganha vida vendendo os resultados de suas lutas.

“A natureza do caçador está sempre ao lado do caçado. Ao menos quando não é você na savana espreitando a presa.” - Pág. 88

O livro, com sua narrativa no estilo confessional, parece uma parábola da vida; com suas lutas diárias, seus altos e baixos, jogos amorosos, tombos. Uma reflexão sobre a pequenez do homem no mundo.

“Somos os prisioneiros de uma vaga ideia de liberdade.” - Pág. 66