"a-maior-função-do-homem-no-mundo-é-transformar-se-em--literatura" - Reinaldo Santos Neves

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Virgínia Mordida [RESENHA]

 


“Não se associe com gente à toa. Levanta dessa mesa, Virgínia, isso não é enredo pra você.” – Pág. 92

Virgínia é um galho longe da árvore, distanciada por Henrí, um tóxico amor – se é que podemos chamar de amor – que a faz secar lhe tirando o pulsar de suas veias-caule que a ligava à sua família e amigas.

“Minha mãe vive falando que temos de enfeitar o corredor da memória para lembrar que somos livres, senhoras e senhores dos nossos oris, com a permissão dos nossos orixás.” – Pág. 16

‘Virgínia Mordida’ de Jeovanna Vieira tem uma narrativa leve mesmo com uma história marcada por violências, é um dos livros que mais me tirou do chão este ano. Fui passando as páginas, levado por capítulos curtos, de uma forma tão fluida que nem percebi o fim se aproximando.

“Meço a extensão dos sorrisos ou o volume das gargalhadas que poderiam disparar combate. O que me faria gargalhar, senão ele? Me calar acabou sendo a estratégia mais eficaz na tentativa de seguir caminhando com Henrí, circundando esse abismo.
Todo dia eu sigo aguentando um pouco mais.” – Pág. 144

O livro é permeado de representatividade; com referências afro-brasileiras, menções aos orixás e a religião, a diáspora, fala muito sobre memória e ancestralidade. O feminismo aqui representado em mulheres se apoiando além do sangue, irmãs por Benedita, enfrentando o patriarcado em forma do ‘amor’ idealizado, mas não só.

Foi cedendo cada dia mais que a personagem principal vai se descolando de suas raízes e da árvore que te protegia, te dava a firmeza que todo corpo precisa para viver.

“[...]amar é menos se encontrar com o outro e mais não se perder de si.” – Pág. 146

O “romance galopante, sem rodeios. Nu, cru” que fala Andréa Del Fuego traz as memórias da dor, sons de um corpo se despedaçando. Corpo-galho esse rasgado por xingamentos, pressão à maternidade, controles, um corpo podado por todos os lados. É assim que caminha a história de Virgínia seguindo a rota de outros corpos-galhos, infelizmente.

Mas neste romance o fim é um pouco diferente, para encerrar digo apenas mais uma coisa: 

Leia Jeovanna.


sábado, 16 de novembro de 2024

Tengo miedo torero [RESENHA]

 


“Pero se contuvo; no podía aplicar en el amor las lecciones sucias de la calle.” - Pág. 34

Uma travesti, guerrilheiros, um ditador, um atentado e um amor. Esses são os planos de fundo do único romance de Pedro Lemebel.

“[…]ellos estaban de acuerdo con tu gobierno, porque era uno de los pocos países que te admiraban por haber derrotado al marxismo.” - Pág. 41

La Loca del Frente, personagem principal do livro e o ‘presidente-ditador’ - em capítulos intercalados - desnudam um Chile ao mesmo tempo repressivo e poético.

“Como si no se supiera que es el único que manda en este país de mierda, donde uno ni siquiera puede comprarse un tocadiscos para escuchar lo que quiere.” - Pág. 79

Depois de uma vida escrevendo suas crônicas sensíveis e ácidas, Pedro nos brinda com esse romance que é uma síntese de seu país pós-ditadura, com pitadas de humor e horror entrega a seus leitores uma obra prima.

“De tanto escuchaste las transmisiones sobre ese tema había logrado sensibilizarse, emocionase hasta vidriar sus ojos, escuchando los testimonios de esas señoras a quienes les habían arrebatado al marido, a un hijo, o algún familiar en la noche espesa de la dictadura. Ahora se atrevía decir dictadura y no gobierno militar[…]” - Pág. 113

Eu conheci o autor tem uns anos, me apaixonei de cara após ler ‘Serenata Cafiola’ e agora esse ‘Tengo miedo torero’ (ambos em espanhol, pois ainda não tem tradução em português) veio para cravar ela na minha lista de escritoras favoritas da vida.

“¿Y qué le iba a hacer?, si en su vida siempre alumbró lo prohibido, en el retangueo amordazado de imposibles.” - Pág. 120

Tengo miedo é puro história chilena, o autor sita vários acontecimentos, entre eles o golpe militar, o assassinato de Allende e a guerra do pacífico. Pedro relembra com maestria as lutas diárias do povo latino-americano.

O que mais gostei do que li dele até hoje é o fato de descobrir cantoras e músicas novas, a autora nos apresenta neste romance, através do rádio da Loca del Frente nomes importantes da música popular e folclórica chilena.

“[…]entre amar y querer hay un mundo de diferencia. Te quiero con tu diferencia. No es lo mismo. Yo por ti, como dice una canción, contaría la arena del mar (con los ojos entornados). Por ti yo sería capaz de matar.” - Pág. 129

O que me leva a mais um apontamento sobre a leitura: a linguagem do livro é quase toda coloquial, a língua das ruas, das vielas, do povo. O que me fez sentir mais próximo das personagens.

“[…]el cuento terminaba de esa manera absurda, Carlos y ella arrancando en dos direcciones opuestas.” - Pág. 166


quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Entrevistando Contemporâneos & Independentes: Latinidades & Representatividade - Natalia Borges Polesso

 


"A partir desses anos é que entendi que eu também poderia escrever “de verdade” e essa suposta “autorização” que entendi existir quando li outras identidades tem a ver com uma serie de ideias que são também construídas no nosso pensamento. Ideias coloniais e normativas.

Natalia Borges Polesso

Como a literatura entrou em sua vida?

Natalia: Pela contação de histórias. Morei com meus avós por um período curto da minha infância e o que ficou marcado para mim foram os causos que minha avó contava na hora de dormir. Eu devia ter uns 6 anos, acho que foi ali que eu entendi o que era uma história; que uma pessoa podia contar uma história. Sabe quando a gente toma consciência de algo? Depois disso, outra coisa que me marcou foi ter topado com um livro de poemas na minha casa, isso já com 8 ou 9. Não tinha livros em casa, nem sei muito bem como aquela coletânea foi parar lá, sei que li “A lira do amor romântico”, do Drummond e pensei “hmmm acho que eu também sei fazer esse negócio de poesia”. Lembro bem do sentimento, daí comecei a escrever uns versinhos. Eu não sei dizer se lia pouco ou muito, mas lembro de ser uma pessoa curiosa com livros.

Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor(a)?

Natalia: Fui ter mais acesso a livros na faculdade. Morei muito tempo no interior e, apesar de frequentar a biblioteca pública da cidadezinha, acho que foi mesmo aos 17 anos, quando pude acessar a universidade que comecei a ler mais. Para além das recomendações dos professores, eu já tinha aprendido a explorar os corredores e as estamtes e fui me dedicar a ler o que eu pensava que uma estudante de letras tinha que ler: Shakespeare e a grande literatura ocidental. Digo isso hoje num tom de ironia. Uma das primeiras matérias que fiz na faculdade de Letras se chamava “Literatura Ocidental: da Ilíada à Odisseia”. É claro que essas leituras me formaram e que minha formação acadêmica foi bastante ocidental, branca, em grande parte masculina e hétero. Quando saí um pouco disso, fui encontrando os escritos que realmente amei. Caio, Cortázar, Lygia, Clarice, Marina Colassanti. Mas eu tenho a impressão de que foi só a partir de 2009, quando entrei no mestrado para trabalhar com gênero e literatura e 2010 quando também comecei a ler mais pessoas contemporâneas (e claro que nos anos subsequentes houve uma grande mudança no cenário editorial) é que minha construção como autora foi se indicando mais como um caminho. A partir desses anos é que entendi que eu também poderia escrever “de verdade” e essa suposta “autorização” que entendi existir quando li outras identidades tem a ver com uma serie de ideias que são também construídas no nosso pensamento. Ideias coloniais e normativas. Eu nunca tinha aventado ser escritora, nem mesmo depois que publiquei meu primeiro livro. Eu queria ser médica, só que os impedimentos financeiros me levaram para a docência. E que bom. Hoje não dou médica, mas sou doutora.

Consegue viver de literatura?

Natalia: Sim. Porque trabalho em várias frentes. Se tu me perguntar se consigo viver de direitos autorais, a resposta é não. Mas eu sou professora e pesquisadora em um programa de pós-graduação, atualmente (2023-2024) tenho uma bolsa CNPq/FAPERGS e também recebo alguns convites pagos para feiras, palestras, juris e outros eventos, dou oficinas e cursos, faço leituras críticas e traduções. Enfim, são muito os trabalhos que uma pessoa tem que exercer para viver de literatura. E não é só aceitar o convite e realizar o trabalho em si. É responder os emails, fazer a agenda, organizar a lista infinita de documentos que cada evento pede a depender do edital que o contemplou, fazer os envios, fazer a notas fiscais, ser secretária, assistente, contadora, realizar uma burocracia imensa que por vezes até nos impede de escrever. Mas é isso. Vive-se de literatura, na precariedade da autonomia e do fazer freela, sem direito a aposentadoria, seguridade social, nada disso. Eu acho que a profissão de escritor/a é um tanto recente, entende? Antes quem poderia se dar ao luxo de escrever, talvez já tivesse um outro trabalho que sustentasse esse vício horrendo que é a escrita. Ou talvez fossem herdeiros. E como eu não sou herdeira nem ganhei na mega ainda, a peleja é grande.

Em uma entrevista sua - para o canal Bondelê no Youtube - você diz: “a gente precisa furar essa grande mídia preguiçosa para que leiam (as margens, o que se produz na periferia)”, você criticava e com razão quando te divulgavam falando que uma “desconhecida superou Veríssimo e Fonseca”. Na época você tinha ganhado o Prêmio Jabuti com Amora. Queria saber se ainda pensa igual? Viu alguma mudança na mídia literária brasileira nesses anos?

"Não dá pra fazer crítica literária com ferramentas supostamente universais que foram pensadas a partir de branquitute, cisheteronormatividade, regionalismo sudestino, urbano, etc. É meio burro quando não mau-caráter.

Natalia Borges Polesso


Natalia: Penso igual porque as coisas não mudaram tanto assim. Eu acho que alguns de nós escritores/as temos mais trânsito, porque, o mercado editorial também mudou assim como a relação das pessoas leitoras com a leitura e com as pessoas autoras. E também acho que eu tenho mais trânsito, como escritora. Penso que há pessoas mais plurais fazendo crítica sim, mas, de modo geral, a crítica e a universidade ainda têm uma grande lacuna de letramento estético e teórico. Tudo é muito estruturalista e pós-estruturalista. As ementas, e digo isso como professora, pouco mudaram. Tenho muitos alunes que me dizem “a primeira vez que li algo decolonial foi contigo”. Acho que poucos são os formadores e educadores, dentro da universidade, que pensam as bases das perspectivas de onde está sendo produzida uma literatura muito viva hoje. Isso cria um abismo de compreensão na leitura. Não dá pra fazer crítica literária com ferramentas supostamente universais que foram pensadas a partir de branquitute, cisheteronormatividade, regionalismo sudestino, urbano, etc. É meio burro quando não mau-caráter. Sempre que faço alguma fala ou palestra em universidades, pergunto como estão as ementas dos cursos. Quando digo que as coisas não mudaram tanto assim, é porque as respostas me dizem isso. Acho que o que falta a nossa crítica é certo letramento estético, formação mesmo, deslocamento de si. Ela ainda está fixada em certas imagens e construções de identidade, sentido e discurso de quando a literatura era pouco plural e isso a pesquisa do perfil do autor e do escritor, da professora Regina Dalcastagne, mostra, apesar do seu viés. Mas aqui eu poderia escrever um artigo inteirinho. Isso é uma reflexão minúscula que deixo.

Quais são suas referências literárias?

Natalia: Há escritores e escritoras que marcaram minha formação. Alguns já citei Caio, Cortázar, Lygia, Clarice, Marina Colassanti, Drummond, poderia adicionar, Virginia Woolf e Oscar Wild. Mas acho que minhas referências hoje são mais as pessoas que escrevem comigo contemporaneamente. E de algumas delas tenho a sorte de ter a amizade. Por exemplo, acompanho há tempos o trabalho de cronistas e dramaturgas como Cidinha da Silva e Paloma Franca Amorim, gosto muito dos contos da Veronica Stigger e do Leo Tavares, romancistas como Luciany Aparecida e Jeferson Tenório me comovem demais. Recentemente, li o Ressuscitar Mamutes, de Silvana Tavano e gostei demais, assim como o livro de poemas Rosameniniho, de Marcondes FH. Enfim, a literatura contemporânea brasileira pulsa. Eu poderia citar aqui também as estrangeiras que tenho lido como a ganhadora do Nobel, Han Kan, ou as latino-americanas como Mariana Enriquez, Brenda Lozano. Acho que aprendo muito lendo quem está escrevendo junto comigo neste tempo.

No prefácio da nova edição do ‘Amora’ você diz “Eu queria...explorar os destroços. Escrever sobre as coisas que estavam submersas em mim, sobre aquilo que eu tinha perdido, sobre aquilo que eu nem sabia que existia dentro de mim. Foi isso que eu busquei.” Após todos esses anos que se passaram, com os feedbacks e releituras – se é que houveram – você acha que atingiu o que queria com o Amora? E o que Natalia que escrevia o livro encontrou no processo?


Natalia: Eu acho que sim. Sou muito feliz e orgulhosa dos caminhos do Amora. É um livro que me emociona nos encontros que tenho com as leitoras. Desde sua publicação, até hoje, encontro pessoas que me contam como foram profundamente tocadas pelo livro, não raro essas pessoas ficam emocionadas ao me contar. Eu acho que isso diz do alcance e do poder de um livro. Não é tanto sobre quantas pessoas, mas quanto na pessoa, entende? A Natalia que escreveu o livro continua se surpreendendo.

Lida bem com as críticas?

Natalia: Sim. Acho que lido bem, mas não deixo de ter a minha crítica sobre a crítica hahaha, como já disse. Mas essa é a Natalia pesquisadora e professora falando. Perguntas ou comentários horrorosos da crítica já me levaram a lugares muito bons da pesquisa. Por exemplo, uma vez, um entrevistador me perguntou se com Amora eu queria “escancarar o universo lésbico”. São tantas camadas de bizarrice numa pergunta dessas que não dá pra não responder com senso crítico. Primeiro a escolha do verbo escancarar, que é violento no contexto; depois a pressuposição da existência de um universo lésbico, que eu deveria ser capaz de mostrar melhor, porque decerto, ele e outras pessoas não conseguiriam ver. Estou certa de que muita gente não vê problema na pergunta, assim como acho que o próprio entrevistador não viu, mas isso não quer dizer que os problemas não estão lá. Respondi a ele com humor que se houvesse um universo lésbico, eu estaria lá e não neste compartilhado.

Como está sendo o retorno (feedback) das leituras do seu livro novo, o ‘Condições ideais de navegação para iniciantes’?

Natalia: Das pessoas leitoras está sendo muito bom. Acompanho com entusiasmo. Além disso, até o momento saíram, duas resenhas e comentários no youtube, os dois bem positivos. Livros de contos não são muito comentados pela grande mídia, então não to esperando muita coisa.


O que seria de sua vida sem as letras?

Natalia: Bah, não sei. Não quero nem tentar fazer esse exercício de imaginação.

Sem pressão: está trabalhando em algum livro novo no momento?

Natalia: Estou sempre trabalhando em algum livro. Este ano, retomei Penelope Obscura, um romance que comecei em 2020, mas que deixei de lado para terminar o Condições ideais e o Foi um péssimo dia. Ele faz parte de uma trilogia ecológica que comecei com A extinção das abelhas. Só que, neste momento, estou dando mais atenção ao meu grupo de estudos e à pesquisa do pós-doc que termina em breve.

Eu acho que já li quase todos os seus livros e sempre me pego numa arapuca, poética sim, mas também forte porquê não? A minha dúvida, e de todos que ainda não leram o ‘Condições ideais de navegação para iniciantes’ é, o que devemos esperar desse livro novo?

Natalia: Esteticamente, uma junção de Recortes para álbum de fotografia sem gente e Amora. Contos mais longos em comparação aos dos livros mencionados, mas com a mesma carga dramática e tentativa de tensionamento de imagens.

Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Natalia: Escreva. Não tem outro jeito, escreva muito. Escreva com e sem propósito. Faça exercícios de escrita. Compartilhe seus escritos com um grupo de escrita. Faça alguma oficina legal. Ouça as críticas dessas leituras, esse é o momento de trabalhar o texto e repensar as decisões. Leve tudo em consideração, ponha seu trabalho e sua escrita em dúvida, mas não de maneira depreciativa, e sim como perspectiva mesmo. Depois decida se vai seguir ou não com a ideia.









Natalia Borges Polesso é escritora e tradutora. Publicou Amora (2015), Controle (2019), Corpos secos (2020), A extinção das abelhas (2021) e Foi um péssimo dia (2023), entre outros. Ganhou e foi finalista de diversos prêmios literários, como Jabuti, São Paulo, Açorianos e Minuano. É pesquisadora de pós-doutorado na PUCRS, com bolsa CNPq/FAPERGS. Sua pesquisa está centrada no conceito de Antropoceno e visa observar as relações coloniais e a ecologia, na literatura brasileira contemporânea. Em 2024, volta aos contos com Condições ideais de navegação para iniciantes.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

‘Relicário dos afetos Outros’ [RESENHA] do livro ‘Amora’

 


“Escrevo essas frustrações úmidas nas margens de um jornal.” - Pág. 187

Ler ‘Amora’ é se arriscar num precipício de sentimentos; um livro que sopra poética com palavras doces com o mesmo vento te empurra penhasco abaixo a cada página.

“- Talvez você esteja usando a parte errada do corpo.
- O quê?
- Racionalizar tudo, analisar tudo, escrutinar tudo. Tente sentir mais…” - Pág. 63

Apesar de ser um livro de contos algumas vezes pesados ele me levou a uma narrativa da sensibilidade, com muitos fragmentos breves, sensíveis, suas prosas curtas me fisgaram.

“Angélica lhe sorriu e ajeitou uma mecha do cabelo de Amora. Ela suspirou. Amora sabia o que era aquilo, mas não entendeu como podia ser. Falaram tantas fases quanto podiam embaixo daquele ipê.” - Pág. 147

Enquanto lia pensava que ‘todas minhas amigas bi e lésbicas deviam lê-lo’ também, mas não só, aliás ele conta como aquelas mulheres contornam o que seus destinos haviam talhado em seus corpos e moldado suas vidas. Escrito suas histórias.

“… a Leci não era parente e toda vez que chegava para ficar, a moça da recepção lhe dizia que já havia um parente no quarto e que para o pernoite parentes tinham preferência. A tia Leci voltava para casa chorando.” - Pág. 176

Em uma de suas capas se resume bem o bem o que ‘Amora’ nos conta: “estas histórias revelam um delicado retrato do mundo sob a perspectiva de protagonistas repletas de nuances e complexidades. Juntas, elas formam um mosaico de violências, desejos, caos, ternura e liberdade…”

“… aquele momento infeliz que vivia… a felicidade obrigada, os planos, a vontade de ter filhos. Nada daquilo parecia atraí-la. Queria correr na direção contrária…” - Pág. 181

‘Amora’ venceu o Prêmio Jabuti, Açorianos e o AGES, foi traduzido e publicado em diversos países.







Natalia Borges Polesso é pesquisadora, escritora e tradutora. Tem oito livros publicados, entre eles, Recortes para álbum de fotografias sem gente, Amora, Controle, Corpos secos e A extinção das abelhas. Tem seus trabalhos publicados em diversos países, como Argentina, Espanha e Estados Unidos.


Outras resenhas similares:

“A extinção das abelhas: quando não há mais um enxame” (RESENHA)

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Viagem Solitária [RESENHA]

 




“Havia descoberto que há várias masculinidades diferentes e que são constituídas também pelas tecnologias da cultura dominante.” - Pág. 331

Eram outros tempos, homens trans com problemas diferentes das mulheres trans, mas como fez diferença o acesso tanto à informações quanto de profissionais interessados no assunto para que a história de João Nery se transformasse nesta luta por direitos da comunidade e principalmente pelas pessoas trans no Brasil.

“O espelho tornara-se agora meu aliado, sentindo-me mais forte e íntegro. Não procurava propriamente a beleza, mas a coerência.” - Pág. 227

‘Viagem Solitária’ é um relato sincero do primeiro homem trans a realizar a cirurgia de resignação sexual no país. Com um tom confessional e autobiográfico - e com sua escrita profunda e poética - o autor nos conta sobre sua vida; dificuldades, desafios, amores, infância e vida adulta. Como João atravessou essa jornada à liberdade que tanto almejou.

“Mais uma vez me arriscaria, submetendo-me como cobaia. A sensação de ser o primeiro aventureiro nessa escalada científica me atemorizava, e não me atraía em nada a ideia de morrer como herói.” - Pág. 199

Em 2018, um mês após seu falecimento, recebeu o prêmio Direitos Humanos, concedido pelo Ministério dos Direitos Humanos no Brasil.


segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Entrevistando Contemporâneos & Independentes: Latinidades & Representatividade - Marcio Markendorf

 




"Quando você cresce carente de imagens de referência, com as quais possa se identificar, isso pode criar uma fratura na subjetividade e certa fragilidade na autoestima. Então, quando penso na cena contemporânea, é inegável o impacto que essas ações editoriais produzem sobre os sujeitos LBGTQIAPN+, que agora não precisam apenas se espelhar no amor romântico cisheterossexual.

Marcio Markendorf


Como a literatura entrou em sua vida?

Marcio: Eu gostava muito de ler quando criança, meus pais tinham uma biblioteca razoável, com exemplares adquiridos do antigo Clube do Livro. Comecei a rabiscar alguns poemas por volta dos nove anos e publicava-os no caderno infantil do Correio do Estado, em Campo Grande.

Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor(a)?

Marcio: Sem a presença constante da leitura na minha vida seria muito difícil criar uma arquitetura autoral. Criação precisa de alimento, de repertório. Quando comecei a escrever, estava muito inspirado pelo estilo das pessoas que eu lia e com as quais me identificada em termos de projeto de arte. Com o tempo fui procurando buscar meu próprio estilo.

Consegue viver de literatura?

Marcio: Creio que, assim como muitos outros colegas de ofício, é difícil viver de literatura no Brasil. A maior parte dos escritores possui o tal “emprego de verdade”, aquele que paga as contas, e escreve literatura como guerrilha. Tive quatro obras publicadas por editais de incentivo à cultura, mas o cachê recebido é algo simbólico, o maior investimento está direcionado em produzir um projeto que possa chegar ao público de forma gratuita. E nas publicações por editoras independentes, como boa parte dos contratos, recebemos de direitos autorais dez por cento do número da tiragem, que fica em uma média de 100 exemplares. Caso haja uma nova reimpressão, recebemos em valor-livro de novo. Não é rentável, mas é prazeroso.

Em um post sobre seu livro ‘A lua fantasma’ no site miradajanela.com escreveram: “A obra, publicada pela editora Hecatombe, integra a Coleção Pajubá, dedicada às autorias LGBTQIAPN+ do cenário contemporâneo.”. Qual a importância de dar espaço a este tipo de publicação? Você consegue dimensionar o impacto dessas ações editoriais no cenário nacional?

Marcio: Em um cenário que ainda perpetua um imaginário cisheteronormativo e tem o mercado editorial dominado por escritores/as heterossexuais, é muito importante criar fissuras e tensionamentos no fluxo hegemônico ao incluir outras representações e representatividades. Quando você cresce carente de imagens de referência, com as quais possa se identificar, isso pode criar uma fratura na subjetividade e certa fragilidade na autoestima. Então, quando penso na cena contemporânea, é inegável o impacto que essas ações editoriais produzem sobre os sujeitos LBGTQIAPN+, que agora não precisam apenas se espelhar no amor romântico cisheterossexual.

"No meu tempo de leitor, só se conhecia Caio F. como alguém que escrevia contos gays porque era o único com algum reconhecimento da academia e que foi publicado por grandes editoras. Eu li e reli Caio e de algum modo, aquele modo cinematográfico, cheio de referências intertextuais, me capturou.

Marcio Markendorf

Qual a maior dificuldade que encontra para chegar ao público leitor?

Marcio: Para atingir o público é preciso ter uma boa conjuntura de fatores, desde um bom plano de divulgação a um grande investimento de marketing. Editoras hegemônicas do mercado conseguem ter maior distribuição e, consequentemente, maior projeção de seus autores. Escritores da cena independente precisam fazer um esforço maior para fazer a obra chegar até o conhecimento das pessoas.

Quais são suas referências literárias?

Marcio: Eu tenho em alta conta escritores como Caio Fernando Abreu, Ana Cristina Cesar, Clarice Lispector, João Gilberto Noll, Marcelino Freire, Sylvia Plath.

Na orelha do seu livro ‘A lua fantasma’ Flávio Adriano Nantes diz que ele é “...um hino de oblação a Caio Fernando Abreu”, um dos grandes representantes abertamente gay da literatura brasileira contemporânea. Eu me senti muito representado ao ler o seu livro, queria saber de você, como foi escrevê-lo e qual a importância de Caio na sua formação como leitor e consequentemente como escritor?

Marcio: No meu tempo de leitor, só se conhecia Caio F. como alguém que escrevia contos gays porque era o único com algum reconhecimento da academia e que foi publicado por grandes editoras. Eu li e reli Caio e de algum modo, aquele modo cinematográfico, cheio de referências intertextuais, me capturou. Não é à toa que brinquei com a ideia de romance-móbile que aparece em “Os dragões não conhecem o paraíso”. O conto que dá título ao meu livro, “A lua fantasma”, é inegavelmente um pastiche estrutural de contos do Caio. Quando li “Morangos mofados” pela primeira vez, sabia que queria escrever com aquela potência e de um modo que as pessoas pudessem se reconhecer, como talvez tenha acontecido com você.

Lida bem com as críticas?

Marcio: No campo da criação artística, acredito eu, é preciso estar de coração aberto às críticas, só assim você consegue se aperfeiçoar. Obviamente as pessoas preferem o elogio à crítica, mas entender o que não está funcionando em termos de narrativa ajuda você crescer seus ossos e ir mais fundo.

Como está sendo o retorno (feedback) das leituras?

Marcio: Até o momento tenho tido retornos muito positivos. Às vezes alguém me manda mensagem e diz que se identificou demais com tal personagem ou que tal história parecia sobre a vida dele. Bem, esse era o objetivo desse livro, que a experiências narradas pudessem ter algo sobre como era a vida gay nos anos 1990.

O que seria de sua vida sem as letras?

Marcio: Hoje já não consigo me imaginar sem escrever. No começo, quando comecei a publicar textos, via blog, lá no início dos anos 2000 e o começo da popularização da internet, eu não me sentia escritor por duas razões: primeiro, porque se você escrevia em blog era chamado apenas de ‘blogueiro’, o que dizia que você era um escritor de terceira categoria; segundo, porque a materialidade do livro parece que confere esse status de escritor, algo que o virtual por si só não dá conta. Quando veio o primeiro livro publicado, em 2019, comecei uma vida de escrita/escritor que não vai parar mais.


Uma pergunta um pouco mais pessoal: como foi sua descoberta enquanto homem gay, seus desafios e dulçores com a própria comunidade e como esse caminho lhe ajudou na preparação do livro ‘A lua fantasma’?

Marcio: Eu cresci em Campo Grande/MS, uma capital bastante conservadora, desenhada em uma masculinidade bruta e de estilo cowboy. Então a autodescoberta da sexualidade não foi um processo fácil, especialmente porque as imagens de referência que a cultura de massas trazia eram a da “bicha louca” ou da “travesti", ou seja, ou você seria motivo de riso dos outros ou seria alvo de violência de diversos tipos. Como ninguém queria esse tipo de vida para si – ainda mais com as narrativas estereotipas do gay que morre solitário, de doença ou de assassinato –, o peso dos armários deve ter afundado um pouco o terreno de Campo Grande. Tentei captar um pouco o espírito daquele lugar em “Lá, na cidade pecuária”, com a fictícia cidade de Boi Grande, com muitas passagens autoficcionais, como o primeiro beijo e o primeiro amor.

Está trabalhando em algum livro novo no momento?

Marcio: Agora em julho lançarei um novo projeto, escrito com mais cinco outros artistas, que reúne diferentes linguagens, tais como o verso, a prosa, a fotografia, a colagem, a ilustração, os quadrinhos, a cianotipia. É um livro multiautoral e multiartístico chamado “Imagenações”.

Na página de pré-venda do seu livro há um trecho da descrição que fala: “O projeto ficcional “A lua fantasma” tem como leitmotiv a representação de personagens homossexuais que enfrentam seus horrores íntimos...”. Você consegue ver hoje uma significativa representatividade na literatura se tratando da comunidade LGBTQIAPN+ no geral? Acha que com seu livro conseguiu atingir o que queria?

Marcio: Creio que não apenas na literatura, mas o cinema e o streaming têm colaborado enormemente para criar novas narrativas para comunidade LGBTQIAPN+, distantes daquelas que mencionei há pouco, com fim trágico. É curioso, por exemplo, como uma série como “Heartstopper”, que é direcionada para um público mais jovem, tenha emocionado tantas pessoas da minha geração. Muitos amigos disseram que se tivessem visto alguma história como essa no passado, não teriam enfrentado tanto drama e medo, percepções com as quais concordo. Nesse sentido, penso que meu livro tem um traço que arriscaria chamar de ‘documental’ porque expressa os horrores de ser gay naquela fatia temporal dos anos 1980/1990.

Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Marcio: Leia sempre, leia muito, entenda que a primeira versão de um texto é sempre um rascunho a ser maturado, aprenda a ter disciplina para escrita e estabelecer um método de disciplinar a criatividade.









Marcio Markendorf é professor, pesquisador e escritor. Leciona no Curso de Cinema e no Programa de Pós-graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor da novela “Soy loca, Lorca, feito um chien no chão” (Urutau, 2019) e dos livros de contos “A lua fantasma” (Hecatombe, 2023) e “O sonhos perturbados de Juliano Adrián” (Edição do Autor, 2023), este último financiado pelo Fundo Municipal de Cultura de Florianópolis. Em parceria com Adriano Salvi, publicou o livro de mininarrativas “Microcontando” (Caiaponte Edições, 2019) por meio da lei de incentivo à cultura da Fundação Cultural de Balneário Camboriú. Foi contemplado no prêmio Elisabete Anderle de incentivo à cultura em 2020 e publicou o livro de microcontos “Ainda estavam lá”, com André Ricardo Aguiar e Adriano Salvi (Edição do autor, 2021). Publicou “Imagenações” (Edição do Autor, 2024), um livro-objeto multiautoral, ao lado de Andréa C. Scansani, Kristel Kardeal, Lucas Gabriel Soares, Milena Fernandes e Nílbio Thé, projeto artístico financiado pelo prêmio Elisabete Anderle de incentivo à cultura de 2023.

domingo, 21 de julho de 2024

Duas novas apostas à literatura feita no ES

 A literatura na capital Vitória foi movimentada por estes dois lançamentos




Carla Guerson e Reyan lançaram seus livros esta semana

A autora Carla Guerson (@carlaguerson) lançou seu primeiro romance “Todo mundo tem mãe, Catarina”, publicado pela editora Reformatório, no dia 20 de julho, as 16h, no Sesc Glória (@sescgloria), Centro de Vitória, capital do Espírito Santo. A autora ainda tem eventos de lançamentos previstos no Rio de Janeiro, em agosto, e em Salvador, em setembro. O bate-papo sobre a obra foi mediado pela escritora e jornalista Lívia Corbellari.


No livro, Carla desenvolve a história de Catarina, uma garota de 14 anos que começa a sua jornada pelas descobertas da adolescência após uma infância marcada pela falta de pai e mãe. Criada pela avó, uma servente de condomínio de classe média no interior do Espírito Santo, a personagem precisa desvendar a história familiar complexa e cheia de segredos para crescer. Em meio à essa jornada, a garota se depara com temas complexos como prostituição, religião, sexualidade, diferenças de classes e as escolhas que ela precisa fazer.


O livro possui textos de apoio assinados por autoras reconhecidas no mercado literário: a orelha foi escrita por Marcela Dantés, finalista do Prêmio Jabuti 2021 e do Prêmio São Paulo nos anos de 2021 e 2023, semifinalista do Prêmio Oceanos 2017 e autora dos livros “Nem sinal de Asas” e “João Maria Matilde”. Já a quarta capa é de autoria de Débora Ferraz, escritora vencedora do Prêmio Sesc de Literatura em 2014 e Prêmio São Paulo de Literatura em 2015.


Já Reyan Perovano, lançou na quarta-feira (17), seu primeiro livro no Espaço Cultural Thelema, no Centro de Vitória. O lançamento aconteceu três dias após o Dia Internacional da Pessoa Não-Binária, que é celebrado anualmente no dia 14 de julho. O evento contou com uma programação cultural, com espaço para DJ, sarau de poesias, criação de desenhos com o público e bate-papo com Reyan, que é escritora e também ilustradora da obra.


Nil é uma carta escrita para uma criança que sente muito e que às vezes não sente nada. Nil é uma criança preciosa, de um jeito frágil e muito bonito. É uma criança que cresce sem se ver no mundo em que habita e passa, assim, a buscar uma travessia para que seja possível florescer.

Com frases curtas, um enredo riquíssimo e ilustrações feitas com giz, o livro conta uma história cativante e muito gostosa de ler. Segundo Reyan “O giz é um material que considero bruto e sensível. Emula emoções e é difícil de deixar polido. Me interessa muito mais o que é possível sentir”. No livro, alguns trechos da história de Nil são contados por meio das ilustrações, sem o uso de palavras. Essa costura delicada entre palavras e desenhos é feita de maneira brilhante pela autora, dando uma fluidez impressionante para a leitura.


Eu tive o prazer de estar nos dois lançamentos e é um misto de prazer e reconhecimento dessa importante ferramenta de conexão entre pessoas, tão diversas e plurais, em gêneros totalmente diferentes. Livros que, em suas diferenças, nos tocam em nossas humanidades. 
Sem dúvida obras que só vem para agregar no mercado literário capixaba, tão rico e marcante. Ansioso por cada leitura.


Sobre as autoras


Carla Guerson nasceu e vive em Vitória, no Espírito Santo. Formada em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, escreve em verso e prosa e é autora do livro de contos “O som do tapa”, publicado pela editora Patuá. Também escreveu o livro de poesia premiado pelo edital de cultura da Secretaria de Cultura do Espírito Santo (Secult/ES) e publicado pela editora Pedregulho “Fogo de Palha”. Ela é mediadora de clubes do livro, comanda o podcast “Você, Personagem” e idealizou e coordena o Coletivo Escreviventes, que hoje agrega mais de 600 escritoras de todo o Brasil.

Reyan é artista. Transita, desenha, escreve, experimenta, tatua. Nasceu em Vitória e vive em Cariacica. É mestra em Artes pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), bacharel e licenciada em Artes Visuais/Plásticas, finalista em pós-graduação de Arteterapia, iniciante em técnico de Artes Dramáticas/Teatro. Pesquisa contextos sociais, filosóficos e políticos de gênero, sexualidade, racialização e classe e seus atravessamentos nas artes e suas linguagens.

Outras resenhas:



Espero que tenha gostado, nos vemos em breve

Até!


terça-feira, 2 de julho de 2024

EU, travesti [RESENHA]

 

Eu, travesti: Memórias de Luísa Marilac e Nana Queiroz (Editora Record, 2019)



“— E teve boatos que eu ainda estava na pior. Se isso é estar na pior, PORRAM! O que quer dizer tá bem, né?” - Pág. 168

O livro de Luiza e Nana é um escândalo! Nele as autoras escancaram a noite, fetiches estranhos de homens ‘héteros’ e, é claro, a vida das travestis que fazem seus pontos nas calçadas pelo país.

“Mas antes de ser travesti e de ser puta, eu fui criança como todo mundo. E eu tinha um corpo que não era nem de menino, nem de menina. Era só um corpo de gente. Um corpo todo.
Corpo de criança não tem rótulo ou sessão.” - Pág. 23

A heteronormatividade em xeque. É o que este livro me mostrou. Além da história de uma das ativistas pelos direitos LGBTQIAP+ no Brasil, uma das mais relevantes e sinceras.

“Ocó foi a primeira palavra que aprendi. Significa homem. Mapô é mulher, bofe é homem também. Neca é o pinto, edi é ânus e aquendar é dar, ou esconder, disfarçar - porque a gente aprende as coisas que importam primeiro.” - Pág. 44

O que mais me cativou neste ‘EU, travesti’ foi o fato de ser um papo limpo, direto e reto com Marilac. Me senti de frente para ela, conversando com uma amiga, que confidencia sua vida como um livro escancarado.

“No Brasil e na maioria dos países que fornecem dados à ONU sobre tráfico não existe treinamento de pessoal para contabilizar cabeças de quem não deveria existir socialmente. Sumimos, invisibilizadas nas estatísticas.” - Pág. 97

Como se já não bastassem os preconceitos sofridos, o texto é carregado de agressões físicas, psicológicas, tráfico sexual, exploração, etc. O pior dos lados do desejo ‘humano’.

“Todas nós tínhamos um prêmio sobre a cabeça. Éramos todas marcadas pra morrer por sermos abominações sociais.” - Pág. 121

É um livro curto, mas pesado, seus capítulos breve são um pedido de suspiro que você, leitora deve fazer. São eles que tornam a leitura fluida e um pouco mais leve.

“A felicidade tem a teimosia de brotar de coisas podres e desajustadas.” - Pág. 35

quarta-feira, 12 de junho de 2024

a fera que mora em cada um de nós, RESENHA de ‘A lua fantasma’

 

A lua fantasma de Marcio Markendorf (Hecatombe, 2023)



“O tempo é uma coisa irreproduzível.” - Pág. 123

Da orelha: “… um hino de oblação a Caio Fernando Abreu, demonstra exímio trabalho com as palavras, labor que em cada uma das narrativas deixa impressos os engendramentos operacionais dos afetos, melhor, os afetos-outros, aqueles considerados socialmente inadequados.” escrita por Flavio Adriano Nantes.

“Amanhã seremos menos. Minhas vísceras tomaram parte da planície, minha alma fará para ti sombra fresca. Então viverei contigo menos que a distância que eu invento, menos que o intervalo de dois focinhos sangrentos.” - Pág. 09

‘A lua fantasma’, livro de contos de Marcio Markendorf, que saiu na coleção Pajubá em 2023 pela Hecatombe é uma obra de arte. Bem diagramado, com detalhes que fazem a diferença. Seu texto no primeiro conto é bem poético, mas no decorrer das narrativas a prosa feroz dita o teor do livro.

“Quantas noites eu não paguei tributos secretos a esse mosaico de corpos do ônibus, de meninos-homens que eu só visitava na intimidade da imaginação?” - Pág 48

É impossível sair ileso dessa leitura, uma ode aos casos de amores ‘raptados’, principalmente se você faz parte daqueles à margem das possibilidades.

“A química dos corpos era difícil de desfazer após tantas camadas do tempo se sobrepondo, soterrando e petrificando. Nós dois. Fósseis agora, em busca de uma arqueologia do desejo.” - Pág 58

O que mais me encantou nos textos de Marcio foi a forma requintada de escrever, sobretudo uma poesia do dia-a-dia normalmente invisível, o que eleva a qualidade de sua escrita.

“Pedro ficou um pouco rasgado por dentro, também com os membros espalhados pelo chão, como se o amor pudesse ser, por conta daquela história, sempre uma tragédia. Para toda a vida. Um mito pessoal.” - Pág 149

O autor é um exímio contista, produtor de mini-cosmos, suas ‘microliteraturas’ são como teias se entrelaçando do início ao fim para uma tessitura leve e perfeita.

“Quando a abelha voltar, direi a ela que minha preocupação é apenas pólen de amor; meu coração, uma delicada e silvestre florada.” - Pág 158





sexta-feira, 10 de maio de 2024

Entrevistando Contemporâneos & Independentes: Latinidades & Representatividade - Thiago Tizzot




"É uma posição que eu considero privilegiada, poder acompanhar todo o processo, da escrita até o leitor, dá uma perspectiva única sobre todas as atividades.


Thiago Tizzot

Como a literatura entrou em sua vida?

Thiago: Ela meio que sempre esteve presente, minha mãe era professora de literatura, então os livros sempre estiveram pela casa. Mas acho que quando li o Hobbit foi quando a coisa ficou séria. Comecei a estudar e a me informar mais sobre o assunto.

Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor(a)?

Thiago: Fundamental, até hoje é, junto com a prática, a coisa mais importante para continuar evoluindo.

Consegue viver de literatura?

Thiago: Como escritor não, mas tudo que faço está ligado com os livros.

Quais os desafios de escrever ficção fantástica no Brasil, principalmente quando se tem concorrentes tão expressivos como Tolkien, R.R.Martin entre outros?

Thiago: A literatura fantástica brasileira aos poucos vem conquistando seu espaço e hoje tem muita gente nacional em grandes editoras e com vendas expressivas de livros. Um dos desafios agora é a concorrência nacional, o que é uma alegria poder dizer. Mas não tem muita diferença das dificuldades de qualquer pessoa que escreve. Conseguir espaço em uma boa editora, ter leitores e uma sequência de publicações. Não é fácil.

Qual a maior dificuldade que encontra para chegar ao público leitor?

Thiago: Conseguir o seu espaço e seus leitores. Tem muita gente boa produzindo, para um público que não é tão grande assim. É muito importante termos programas de incentivo à leitura. Além da produção escrita, hoje temos muitos lançamentos, todos mês tem livros e mais livros sendo lançados. Você precisa encontrar alguma forma de fazer com que seu livro seja notado.

"A literatura fantástica brasileira aos poucos vem conquistando seu espaço e hoje tem muita gente nacional em grandes editoras e com vendas expressivas de livros.

Thiago Tizzot

Quais são suas referências literárias?

Thiago: Não tem como não dizer Tolkien, foi estudando a forma que ele criou a Terra-média que comecei a escrever. Mas uma das melhores coisas que fiz foi abrir as minhas leituras, não ficar apenas na Fantasia. Tem um autor aqui de Curitiba, o Manoel Carlos Karam, que eu gosto muito. Mas cada leitura traz uma coisa nova, um detalhe que guardo para tentar colocar na minha escrita.

Eu como apaixonado e jogador de RPG de mesa já imaginei – e com certeza irei usar Breasal ou seu deserto de Tatekoplan em uma de minhas campanhas – quero saber se você já jogou ou foi influenciado por algum Rpg? Já imaginou a história de ‘Três viajantes’ adaptada para esse universo?

Thiago: Breasal veio de uma aventura de RPG. O começo surgiu ali, depois eu fui criando e colocando outros elementos, mas a ideia inicial é baseada no mundo que servia de cenário para o RPG. Por isso faria todo o sentido ter Breasal em um RPG.

Lida bem com as críticas?

Thiago: Creio que sim, nunca é legal saber ou ler que alguém não gostou dos livros, na hora dá um desânimo, mas depois passa. Desde que comecei a publicar sabia que é impossível todo mundo gostar das histórias. Faz parte do trabalho.

Como está sendo o retorno (feedback) das leituras?

Thiago: É muito bom, uma das coisas que mais me dá alegria é que uma coisa que quase todo mundo fala é que está curioso para ler os outros livros e conhecer mais sobre o universo. Eu sempre vejo cada livro como uma nova peça para dar forma e vida a Breasal.


Atualmente há um crescimento visível de produções audiovisuais e adaptações de obras literárias, um exemplo recente é Duna de Frank Herbert, chegando ao público leitor. Como isso impacta na produção brasileira e consequentemente no mercado livreiro nacional?

Thiago: Eu acho que é positivo, se bem trabalhado, é uma forma de levar os leitores para a literatura fantástica e descobrirem a produção nacional.

Você além de escritor é também livreiro e editor na Arte & Letra, uma livraria e parque gráfico em Curitiba que trabalha o livro de forma artesanal. Como é trabalhar com a palavra desde o livro, a produção, venda da prateleira até a estante do leitor? Qual a importância das pequenas livrarias e as independentes no Brasil hoje?

Thiago: É uma posição que eu considero privilegiada, poder acompanhar todo o processo, da escrita até o leitor, dá uma perspectiva única sobre todas as atividades. Você acaba ao mesmo tempo pensando em todas as etapas quando faz uma. Por exemplo, quando escrevo, meio que já penso como editor e o impacto do livro na livraria. Acho que você acaba mais consciente das coisas, vivenciando todas as etapas no dia a dia. As pequenas livrarias e as independentes são fundamentais, são elas que vão dar a visibilidade e a bibliodiversidade necessária para que tantas pessoas que escrevem encontrem seus leitores. Sobre todas as aquelas dificuldades que eu falava, sobre conseguir seu espaço e se conectar aos leitores, a livraria independente ajuda e ajuda muito. Elas são fundamentais para termos novas histórias, novas ideias circulando.

O que seria de sua vida sem as letras?

Thiago: Um pouco mais triste, a literatura me proporciona muita coisa boa.

Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Thiago: Escreva muito.
Leia sempre.







Thiago Tizzot é apaixonado por livros de fantasia e J.R.R Tolkien. Autor de Três viajantes, de 2014, A ira dos dragões, de 2009, e Segredo da guerra, de 2005, comanda também a livraria e editora Arte & Letra, em Curitiba.