"a-maior-função-do-homem-no-mundo-é-transformar-se-em--literatura" - Reinaldo Santos Neves

quinta-feira, 17 de julho de 2025

Escorpião direto na língua [RESENHA]

 


“Impessoalidade não teremos, veracidade muito menos, mas talvez uma coleção de músicas latinas, gozos e gemidos, sangue, devaneios e amor.” Pág. 43

Já na dedicatória do livro a autora já nos mostra o que se seguirá, dedicando aquelas páginas aos seus avós, indicando uma cartografia sanguínea da Ediphôn.

“Encontra, os olhos brilham de amor tanto quanto de temor
Agora é hora de experimentar seu primeiro vestido[…]
Era o que sempre havia procurado
Um tecido teceu abertura de caminhos pra’quele corpo” - Pág. 31

Em um dos primeiros textos ela questiona a obrigação do discurso político de seu corpo pela sociedade, sem espaço para arte, poesia, amor. Apenas a defesa de um corpo dissidente.

“Eu sou a elu, o ela, a elo que mantém tudo isso que vê na performance viva de alguém despida.” - Pág. 11

Temos nessa obra de textos rápidos e pungentes o desejo a importância de saber deixar algumas coisas irem e (re)aprender a ficar consigo, uma necessidade de descoberta do Eu e, consequentemente, a expô-lo ao Outro de forma poética e livre.

“… lá onde fui salva da dor que escapole pelas minhas ventosas eu fui muito mais eu e pude ser feliz.” - Pág. 17

Há questionamentos nos versos de Ediphôn e, em seu Escorpião sobra espaço à possibilidades, o que me fez mergulhar sem medo em seus textos e a gostar ainda mais da autora.

Lendo-a me reconectei com a literatura e, vale essa vírgula aqui, me voltei pra dentro, onde nos afastamos diariamente.

“De roupa
Quero
Mergulhar
Em
Você” - Pág. 19

‘Escorpião direto na língua’ é quase um livro de viagens, rotas indo da baía de Vitória até o Rio de Janeiro e passando por São Paulo até enfim ancorar na Bahia de todos os Santos.

Breves percursos da vida da autora em poemas, crônicas e prosas poéticas curtas, com seus textos autobiográficos que são uma delícia de ler.

“O condeno por ter feito a pele experimentar o amor
E depois rasgá-la todinha no asfalto” - Pág. 23

Ediphôn nos dosa com seus venenos em tons homeopáticos, falando de suas dores, seus medos, suas vulnerabilidades. A autora se permite também ao compartilhamento de suas urgências; de amores, viagens, desejos. Tudo o que nos torna humanos.

Impossível sair ileso e não se conectar com essa leitura.

“[…] hoje sonhei com o nosso carinho no entrelaçar de nossas peles, mas assumir jamais!
[…] Tenho pavor a dor e você tem o potencial de me causar a dor de uma picada de escorpião direto na língua.” - Pág. 42






Ediphôn Souza, 30, poeta, cronista, produtora cultural e professora de língua inglesa na rede municipal de Serra, também atuando com língua portuguesa e literatura brasileira, nascida em Nanuque-MG, e criada na periferia da Serra, mais precisamente em Novo Horizonte, pessoa trans não binária que através de suas vivências e transmutações físicas e emocionais coloca em suas Crônicas e Poesias ao longo dos últimos cinco anos o que é habitar um corpo político e vivo. Participou de antologias como "Identidades" e "Na zona", organizou um livro com a Academia Espírito-Santense de Letras sobre a escritora Lacy Ribeiro chamado "Olhar Marginal", publicou o livro de Crônicas "Luzes Vermelhas", é idealizadora e organizadora de projetos e coletivos como "GritArte" "Trans versos" e "Parede Marginal" além de diversas participações em eventos na Biblioteca Estadual, Biblioteca Municipal de Vitória, Casa Caos, Centro Cultural Eliziário Rangel, onde inclusive já fez parte de um webdoc sobre Novo Horizonte.







segunda-feira, 30 de junho de 2025

Vento Sul [RESENHA]

 




Carmélia, a cronista do povo

“… esta ilha é uma delícia…” - Pág. 58

Carmélia é uma escritora intensa, suas crônicas refletem os tempos vividos entre 60/70, sua melancolia e fossa nos ajuda a entender um período da nossa história.

“É natural e humano o pranto, tanto quanto o riso, na geração de onde eu vim e na geração deste tempo que nos foi dado para viver. Sou decididamente uma jovem velha que tem vivido depressa e às vezes choro porque me sinto triste. Isto não impede, todavia, que eu me saiba uma pessoa perdidamente feliz.” - Pág. 34

Carmélia M. de Souza foi uma das maiores cronistas do Espírito Santo, ela abriu caminho para outras que vieram depois, e vento sul é seu único livro publicado, um compilado de seus textos por seu amigo o escritor Amylton de Almeida.

“…esta poesia jamais deixou de existir em nós. Nós, que as vezes ainda cantamos de noite, baixinho. Nós, que estamos vindo de uma geração que ainda insiste em fazer de sua canção um grito de amor e de protesto. Uma geração que aprendeu a esperar de joelhos, enquanto vai cantando a sua poesia machucada, por causa do cansaço, da dor, do inconformismo e da esperança, que não conseguem, apesar de tudo, nos tornar amargos ou nos envelhecer…” - Pág. 115

Quase sempre afundada na fossa, fã e hater da cantora Maysa, mas otimista no fim, neste livro Carmélia nos presenteia com uma obra lúcida e gostosa de ler, trazendo temas como a sua crise existencial, política, viagens, declarações de amor e até cartas à amigos queridos.

“Busquei imagens de um tempo em todas as esquinas, a impossível promessa e o impossível gesto. E só encontrei mesmo o sabor irremediável das coisas interrompidas, dos momentos doces, que ali ficaram para nunca mais.” - Pág. 156

Carmélia M. de Souza foi um evento, daqueles frios e fortes que abalam estruturas, que faz dançar as folhas das árvores e romper ondas salgadas do mar. Assim também é o livro ‘Vento Sul’, fotografia de um tempo pelo olhar de alguém que soube vivê-lo.

“O resto é nada, meu amor. O resto é apenas onde você não está.” - Págs. 104/105



Assista o filme 'Não se aproxime' AQUI!

Espero que tenha gostado,
me conte nos comentários e

Até breve!


sábado, 21 de junho de 2025

O pavão desiludido [RESENHA]

 

livro 'O pavão desiludido' (Edições Bloch, 1972)

“… a maioria dos adultos é infeliz por carregar nas costas a sua própria meninice mutilada.” - Pág. 106

Enfim li ‘O pavão desiludido’, romance mais famoso de José Carlos Oliveira. Ele, que é um dos maiores cronistas do Brasil, amigo de Clarice Lispector, mas pouco conhecido pelos leitores hoje em dia.

“A rua Gama Rosa se despenca ondulante da cidade alta e vai desembocar no necrotério. Nela se destacam alguns austeros sobrados de fachadas musguentas, cuja as janelas nunca se abrem, e por cujos portões só entram e saem pessoas de mais de 40 anos. São os netos celibatários de antigos aristocratas, hoje despojados de suas chácaras e brasões, e reduzidos à surdez e à demência, em cômodos atulhados de velhos móveis e de velhas paixões.” - Pág. 31

Gostei bastante do livro por se tratar de um romance autobiográfico, tendo como personagem principal ‘José Carlos’ (o Zé) e a família Oliveira.

“… o mar, esta língua esverdeada que se move no interior da paisagem montanhosa e colinífera, como se a cidade fosse uma grande boca satisfeita de hortelã… contemplou o mar. Era um encontro de dois tímidos.” - Pág. 53

O texto, dividido em trinta capítulos curtos, no estilo folhetim tão utilizado por autores clássicos como Machado de Assis, deixa a história que é pesada um pouco mais fluida.


“… estou decidido a extrair de minha garganta todos os cadáveres que por desventura nela estejam ainda enterrados.” - Pág. 104


A personagem conta sua vida desde seu nascimento, em Vitória do Espírito Santo, até a sua mudança para o Rio de Janeiro. Com suas descrições históricas de monumentos, bares, ruas e paisagens torna a experiência de leitura ainda mais rica.

“O verme privilegiado, que escapole em perfeitas condições da placenta intestinal, no princípio se ressente dessa libertação, julgando ter perdido a inocência.” - Pág. 115

O autor toca em temas bastante sensíveis nesta obra, tais como: estupro, suicídio, a miséria, abuso infantil e abandono. Assuntos que, naquela época, eram ainda tabus na sociedade brasileira.

“Roubaram-lhe o amor materno, e o nome do ladrão é Pedro Pinto de Oliveira. Violentando e matando sua linda filha pálida, ele introduziu o tema do incesto na relação pais-filhos.” - Pág. 119

Minha única reclamação quanto a este livro é que o final é aberto, e eu não curto muito, mas funciona pela proposta que o autor quis trazer.

Espero que tenha gostado,
até a próxima!

segunda-feira, 9 de junho de 2025

Saiba como se tornar um imortal da Acedemia Espírito-santense de Letras

 aberto edital para escolha de novos acadêmicos na AEL


A Academia Espírito-santense de Letras (AEL) comunica que, de acordo com o CAPÍTULO III: DA ADMISSÃO À AEL de seu Estatuto, se encontram abertas, no período de 28 de maio de 2025 a 30 de setembro de 2025, a inscrição para as vagas das cadeiras nº 12, antes ocupada pelo saudoso acadêmico GABRIEL AUGUSTO DE MELLO BITTENCOURT, 4º ocupante dessa cadeira, cujo patrono é Gonçalo Soares da França, falecido no dia 18 de dezembro de 2024, e nº 28, antes ocupada pelo saudoso acadêmico SERGIO BIZZOTO PESSOA DE MENDONÇA, falecido no dia 21 de janeiro de 2025, 3º ocupante dessa cadeira, cujo patrono é Luiz Adolpho Thiers Velloso.

O candidato, capixaba e ou residente no Espírito Santo há no mínimo três anos, que deseja concorrer a uma das cadeiras, deve enviar à AEL, com firma reconhecida, uma correspondência com seu pedido indicando a cadeira que deseja concorrer, anexando currículo, livros e comprovação de trabalhos publicados.

O endereço para enviar correspondência é o da Presidente da AEL: Ester Abreu Vieira de Oliveira, Rua Professora Gladys Bernardo Lucas 195, Solar da Ester - Bairro de Lourdes, CEP 29042-185- Vitória, ES. A entrega dos documentos poderá ser feita pessoalmente, ou por correspondência. A escolha dos candidatos será feita por eleição, na reunião de 13 de outubro de 2025.


sexta-feira, 23 de maio de 2025

As meninas [RESENHA]

 



“A memória tem um olfato memorável.” - Págs. 30/31

Lygia, a autora que driblou a censura e mesmo assim escancarou os horrores da ditadura no Brasil publicando seu livro As meninas.

“Os intelectuais estão comovidos demais pra falar, só ficam sacudindo a cabeça e bebendo[…] Eurico continua sumido, foi preso assim que desembarcou e até agora ninguém sabe dele.” - Pág. 22

Em ‘As meninas’ somos guiados, capítulo a capítulo, pelas amigas Lorena, Ana Clara (ou Ana turva) e Lia (a Lião) que vivem no pensionato de freiras Nossa Senhora de Fátima.

“Bom tempo para fazer amor mas não revolução que calor muito forte em subdesenvolvido, amolece. Desfibra.” - Pág. 93

Mesmo sabendo que a autora ganhou o Prêmio Camões (2005) e já foi até indicada ao Prêmio Nobel de Literatura eu ainda não tinha me arriscado a lê-la, e foi um belo começo.

“[…] a forma mais rápida de matar o índio brasileiro é tentar civilizá-lo.” - Pág. 105

‘As meninas’ é um romance denso, principalmente pelo foco narrativo - a forma magistral como Lygia escreve -, onde cada personagem em suas diversas camadas remonta uma parte da história.

“[…] falar em subdesenvolvimento não é só falar nas crianças, depois dou o número exato das que morrem por dia. Tem o analfabetismo. A multiplicação das favelas. Os Retirantes, dê um passeio pelas rodoviárias, escute o que essa gente fala. Vendedores ambulantes com pentes, lápis, giletes. O lixo estourando nas ruas, como se chamam essas bocas que se abre entupidas nas calçadas? A sujeira dos cafés, restaurantes, privadas, a sujeira apoteótica dessas privadas a começar pelas da Faculdade[…]” - Pág. 124

História esta que se entrelaça com a literatura e a memória de um país.

Segundo o filósofo Paul Ricoeur: “talvez haja crimes que não se devam esquecer, vítimas cujo sofrimento peça menos vingança do que narrativa. Só a vontade de não esquecer pode fazer com que esses crimes não voltem nunca mais”.

capa do filme As Meninas (1995)

Depois que li o livro, momento único na minha vida de leitor, principalmente pelas reviravoltas (plot twist), fui assistir ao filme - de 1995 - e em seguida li o artigo ‘A ditadura militar brasileira e os romances As meninas e As horas nuas de Lygia Fagundes Telles (de João Pedro Rodrigues Santos) e que me fez apaixonar ainda mais pela escrita da autora.

“— Essa moda que vocês têm, essa de liberdade. Cismou de andar solta demais e não topo isso[…] Minha filha é moça pobre e lugar de moça pobre é em casa, com o marido, com os filhos.” - Págs. 206/207

‘As meninas’ é um registro histórico e foi isso que o tornou pra mim um livro indispensável, singular por suas personalidades e sobretudo por que expõe as cicatrizes de um povo.

Li com o clube de leitura da @enquantoissoleio, estava criando coragem para fazer-lo, e felizmente tive uma ótima experiência com a leitura.

“Você tem que viver sua vida ao seu modo e não do modo que os outros decidirem, ô, Lena, Lena, não sei explicar, mas aquela história do Tempo devorando os filhos, não é o deus Cronos? Ele mesmo ia parindo e ele mesmo ia devorando tudo.” - Pág. 241

E você, já leu As meninas ou algum outro livro da Lygia?

Me conta.

Espero nos vermos em breve,

Até lá!




Obs. este é um livro complexo, para releituras, por isso vai continuar na minha estante.







sábado, 28 de dezembro de 2024

Nas águas salobras de Bernadette Lyra [RESENHA]

 


“Mas escrever também pode vencer a correria do tempo.” - Pág. 49

O livro é dividido em três partes sendo que na primeira - ‘Nas águas da memória’ - o enfoque é na infância, o perceber-se ‘viva’ num tempo simples que é descrito como “intervalo entre um começo e um fim.” (Pág. 21)

O encantamento à literatura e a descoberta da magia das palavras se repete livro adentro assim como o descolamento da vida real diante da ficção. O início da escrita, Bernadete - e o nascimento - da escrevinhadora.

“Vocês sabem: quando uma criatura chega ao ponto de conversar com as memórias é como se estivesse conversando com a eternidade.” - Pág. 41

Na segunda parte do livro - ‘Coisas deleitosas da Barra’ -, a escritora nos descreve as paisagens de sua querida Barra, lugar de encanto, das memórias sólidas, o plano de fundo mágico da autora. A primeira percepção da ‘morte’ assim como a cadência das memórias da meninice que compõe este ‘Água salobra’.

Em ambas as partes, sob a benção de Cronos - o grande guardador do tempo e das lembranças por ele produzidas - Bernadete costura sua paixão; à literatura. Da qual fala com amor, uma sensação sublime. Do que é levado pelas marés do esquecimento e também o que é trazido pela brisa da rememoração.

“Repartir pequenas maravilhas que se fazem voláteis e desaparecem, como se tudo fosse uma marca d’água na doçura do papel de seda que a memória suspende contra a luz crua da lâmpada da vida.” - Pág. 52

Retratos de um tempo diferente, que reconforta o coração como o fogão a lenha que aquece o canecão de café - que vai acompanhar o bolinho de chuva -, a luz da lamparina. Nostalgia que só as croniquetes são capazes de nos transportar.

As crônicas, quase descambam em uma autobiografia, de uma eterna menina que resplandece ao escrever sobre sua ‘terrinha’.

“Cultivo esse meu gosto de dobrar o tapete do tempo e depois desdobrá-lo sem muitos cuidados para que os visitantes tropecem em uma lembrança escolhida ao acaso.” - Pág. 66

Já na terceira e última parte do livro - ‘Reflexos de outros verões’ - as crônicas relatam as mudanças que ocorreram em Conceição da Barra, as transformações que ocorrem com as pessoas e lugares, além de alguns encerramentos de ciclos.

Temas como mudanças climáticas, fúria da natureza, algumas breves críticas políticas aos governantes da cidade, e de novo com a literatura ainda permeando seus textos, quase dissecada pela autora; ela que é tema constante.

“Durmo e sonho. É dessa maneira que eu posso sossegar o desassossego. Quando sonho com tantos dourados verões que passei em Conceição da Barra, a minha flor de areia. Na verdade, é lá que está agarrado, para sempre, o meu coração.” - Pág. 90

Bernadete é o cais que recebe suas crônicas - este o mar - e nós leitores, ao acessar essa riqueza de ‘salobras águas’, transbordamos.


quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Entrevistando Contemporâneos & Independentes: Latinidades & Representatividade - João Silvério Trevisan


"Para sobreviver, busquei todas as formas de expressão ao meu alcance, inclusive a escrita.

João Silvério Trevisan

Como a literatura entrou em sua vida?

João: Pela via da minha solidão de menino diferente, quer dizer, homossexual, coisa que eu ainda não suspeitava. Para sobreviver, busquei todas as formas de expressão ao meu alcance, inclusive a escrita. Por volta dos 13 anos escrevi algo que pretendia ser um romance. Na adolescência, ganhei dois prêmios nacionais de contos, e isso obviamente me incentivou muito. Sem falar do padre meu professor de literatura no seminário, um cara antenado com seu tempo, na contramão da estrutura eclesiástica.

Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor(a)?

João: Funcionou como tentativa de aprender formas de me expressar. Mas também as novelas de rádio, o cinema e a música popular ou clássica. Tudo isso me mobilizava intensamente.

Você já viveu muita coisa; enfrentou o HIV, foi um exilado pela ditadura, teve depressão, foi censurado, perdeu pessoas queridas, entre outras que até dificulta minha breve lista de perguntas. Vou iniciar com uma mais geral: qual foi a fase mais difícil da sua vida?

João: Viver na contramão é muito difícil, se você é alguém que não gosta de ser manipulado e procura ser fiel a si mesmo. Seria melhor me perguntar sobre a fase mais feliz da minha vida. O chato é que uma não vem separada da outra. Posso dizer que meus amores foram meus momentos mais felizes e também os mais dolorosos. Mas nunca abri mão daquilo que eles me trouxeram de conhecimento da vida, de mim mesmo e do outro. Amar e viver se equivalem.

Consegue viver de literatura?

João: Financeiramente, muito mal, cavoucando saídas. Mas a literatura me ajuda a sobreviver emocionalmente.

Eu adoro romances autobiográficos, sinto que você faz muito isso de trançar a história das suas personagens com as suas. Eu, como você, ‘sou movido pelo encantamento’, que é sua escrita. Você falou em uma entrevista para o ‘Entrelinhas’, programa do canal da Tv Cultura no Youtube (2024), que ‘elabora sempre um projeto literário[...] se renova em cada nova criação literária”, mas a autobiografia sempre – ou quase sempre está lá -, você concorda? Acha que é uma forma de continuar a contar a história de uma sociedade macro através da sua própria?

João: Sempre busquei minha pátria, como algo que não se reduzia a meras fronteiras geográficas. Nesse sentido, descobrir o Brasil tem sido apenas o início do esforço hercúleo de descobrir quem sou.

"Acho que o luto nunca termina, se essa pessoa faz falta. É o caso do meu irmão Cláudio. Muitas vezes me flagro chorando de saudade dele, por algum motivo inesperado.

João Silvério Trevisan

Quais são suas referências literárias?

João: Não há classificação, algo que nunca busquei. Nunca me ative a escolas e estilos. Se existem referências, elas fazem parte do meu amor pela literatura em si mesma.

Você disse em uma entrevista para a DiaTV no Youtube (2023): "Eu tenho boa parte da compreensão de mundo graças ao cinema.” Qual a importância do cinema na sua vida e (se aconteceu) como ele influenciou João escritor e futuro roteirista/diretor?

João: Não sei responder em termos proporcionais. O cinema me fascina desde a infância, tanto quanto a literatura. Quando vou produzir algo, busco uma forma de misturar linguagens, seja em literatura, cinema, teatro ou música. Mas para fazer essas fusões, sei exatamente quais recursos estou usando de cada linguagem. É fascinante a mestiçagem de linguagens diferentes.

Lida bem com as críticas?

João: Desde que elas se justifiquem, sim. Odeio críticas medíocres, sejam positivas ou negativas. Críticas positivas burocráticas não acrescentam nada. São inúteis como bolhas de sabão. Críticas negativas, quando já projetadas antes mesmo da leitura da obra, nascem da má fé ou do preconceito. São execráveis, no mínimo. Críticas que dialogam com sua obra, essas são para mim essenciais e, infelizmente, raras. A praça está cheia de gente fazendo críticas idiotizadas por modismos.

Seu livro ‘Devassos no paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade’ é um importante e mais completo estudo sobre a homossexualidade em nosso país e referência para vários outros estudos que se seguiram. Qual a importância dessa obra para a comunidade LGBTQIAPN+ e para a história da sociedade brasileira como um todo?

João: Com “Devassos no paraíso”, eu busquei revelar um país que foi escondido, e presumo que interesse ao Brasil conhecer o Brasil. Sua importância para a comunidade LGBT será determinada por ela.

Cláudio, seu irmão ao qual foi dedicado um de seus livros e inspiração para você sempre foi o ‘contraponto do seu pai’ como disse em uma outra entrevista, ele que faleceu de câncer e que você sempre comenta. Como foi – e sempre será, digo isso, pois é o sinto depois da perda de minha mãe a três anos - o seu processo de luto?

João: Acho que o luto nunca termina, se essa pessoa faz falta. É o caso do meu irmão Cláudio. Muitas vezes me flagro chorando de saudade dele, por algum motivo inesperado.



'Meu irmão, eu mesmo’ é o segundo livro de uma trilogia, ele sucede ao ‘Pai, pai’, e já fez sucesso no mercado literário nacional a ponto de concorrer a grandes prêmios da língua portuguesa. Como você está vendo o retorno (feedback) das leituras e o que nós leitores podemos esperar do terceiro e último livro dessa trilogia; o ‘Antropofágico amor’?

João: Num país como o Brasil, continuo pessimista quanto ao crescimento do público leitor. Acho que os livros continuam vendendo pouco, seja pelo preço seja pela competição com outros setores de entretenimento.

Está trabalhando em algum livro novo no momento?

João: Sim, intensamente, em “Antropofágico amor”, a última parte da minha trilogia autobiográfica e a mais dolorosa de todas, que deve sair em 2025, assim espero. Mas no final deste ano estou lançando a primeira obra de ficção longa que escrevi, em 1979, ainda para o Lampião da Esquina, que ficou até hoje inédita, depois que o jornal e sua editora fecharam. Chama-se “Os sete estágios da agonia”. É bastante experimental, com todos os atrevimentos de um jovem escritor confrontando a maneira como a sociedade heteronormativa tratava a homossexualidade.

Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor.

João: Não existe manual para bem escrever. Busque sua expressividade mais pessoal e dê uma banana para os modismos, que passam muito rápido. É tudo o que posso dizer.










João Silvério Trevisan é escritor ficcional, jornalista, ensaísta, dramaturgo, diretor/roteirista de cinema e um dos principais nomes do ativismo LGBTQIA+ no Brasil. Nasceu em 1944, em Ribeirão Bonito, São Paulo. Na década de 1970, iniciou sua produção artística e assumiu-se homossexual, duas facetas que sempre estiveram imbricadas em sua vida. Seu primeiro, polêmico e único longa-metragem, Orgia ou O homem que deu cria, de 1971, foi censurado pela ditadura civil-militar e, entre outras razões, o levou ao exílio entre a Califórnia e o México. Já de volta ao Brasil, participou em 1978 da fundação do lendário jornal Lampião da Esquina, primeira publicação homossexual do país, e do Grupo Somos — movimento vanguardista na promoção dos direitos da comunidade LGBTQIA+. A convite da editora britânica Gay Men’s Press, escreveu Devassos no paraíso, o grande estudo histórico sobre a cosmogonia das dissidências de orientação sexual e de gênero brasileiras, lançado em 1986, concomitantemente em Londres e São Paulo. Venceu três vezes o Prêmio Jabuti e o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Artes (APCA), foi finalista do Oceanos e recebeu, entre outras, uma bolsa da antiga Fundação Vitae, para escritura do romance Ana em Veneza. Sua vasta produção artística e intelectual inclui mais de uma dezena de livros publicados, roteiros para cinema e peças teatrais. Em 2024 seu romance autobiográfico 'Meu irmão, eu mesmo' foi finalista dos Prêmios Jabuti e Oceanos.

quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Virgínia Mordida [RESENHA]

 


“Não se associe com gente à toa. Levanta dessa mesa, Virgínia, isso não é enredo pra você.” – Pág. 92

Virgínia é um galho longe da árvore, distanciada por Henrí, um tóxico amor – se é que podemos chamar de amor – que a faz secar lhe tirando o pulsar de suas veias-caule que a ligava à sua família e amigas.

“Minha mãe vive falando que temos de enfeitar o corredor da memória para lembrar que somos livres, senhoras e senhores dos nossos oris, com a permissão dos nossos orixás.” – Pág. 16

‘Virgínia Mordida’ de Jeovanna Vieira tem uma narrativa leve mesmo com uma história marcada por violências, é um dos livros que mais me tirou do chão este ano. Fui passando as páginas, levado por capítulos curtos, de uma forma tão fluida que nem percebi o fim se aproximando.

“Meço a extensão dos sorrisos ou o volume das gargalhadas que poderiam disparar combate. O que me faria gargalhar, senão ele? Me calar acabou sendo a estratégia mais eficaz na tentativa de seguir caminhando com Henrí, circundando esse abismo.
Todo dia eu sigo aguentando um pouco mais.” – Pág. 144

O livro é permeado de representatividade; com referências afro-brasileiras, menções aos orixás e a religião, a diáspora, fala muito sobre memória e ancestralidade. O feminismo aqui representado em mulheres se apoiando além do sangue, irmãs por Benedita, enfrentando o patriarcado em forma do ‘amor’ idealizado, mas não só.

Foi cedendo cada dia mais que a personagem principal vai se descolando de suas raízes e da árvore que te protegia, te dava a firmeza que todo corpo precisa para viver.

“[...]amar é menos se encontrar com o outro e mais não se perder de si.” – Pág. 146

O “romance galopante, sem rodeios. Nu, cru” que fala Andréa Del Fuego traz as memórias da dor, sons de um corpo se despedaçando. Corpo-galho esse rasgado por xingamentos, pressão à maternidade, controles, um corpo podado por todos os lados. É assim que caminha a história de Virgínia seguindo a rota de outros corpos-galhos, infelizmente.

Mas neste romance o fim é um pouco diferente, para encerrar digo apenas mais uma coisa: 

Leia Jeovanna.


sábado, 16 de novembro de 2024

Tengo miedo torero [RESENHA]

 


“Pero se contuvo; no podía aplicar en el amor las lecciones sucias de la calle.” - Pág. 34

Uma travesti, guerrilheiros, um ditador, um atentado e um amor. Esses são os planos de fundo do único romance de Pedro Lemebel.

“[…]ellos estaban de acuerdo con tu gobierno, porque era uno de los pocos países que te admiraban por haber derrotado al marxismo.” - Pág. 41

La Loca del Frente, personagem principal do livro e o ‘presidente-ditador’ - em capítulos intercalados - desnudam um Chile ao mesmo tempo repressivo e poético.

“Como si no se supiera que es el único que manda en este país de mierda, donde uno ni siquiera puede comprarse un tocadiscos para escuchar lo que quiere.” - Pág. 79

Depois de uma vida escrevendo suas crônicas sensíveis e ácidas, Pedro nos brinda com esse romance que é uma síntese de seu país pós-ditadura, com pitadas de humor e horror entrega a seus leitores uma obra prima.

“De tanto escuchaste las transmisiones sobre ese tema había logrado sensibilizarse, emocionase hasta vidriar sus ojos, escuchando los testimonios de esas señoras a quienes les habían arrebatado al marido, a un hijo, o algún familiar en la noche espesa de la dictadura. Ahora se atrevía decir dictadura y no gobierno militar[…]” - Pág. 113

Eu conheci o autor tem uns anos, me apaixonei de cara após ler ‘Serenata Cafiola’ e agora esse ‘Tengo miedo torero’ (ambos em espanhol, pois ainda não tem tradução em português) veio para cravar ela na minha lista de escritoras favoritas da vida.

“¿Y qué le iba a hacer?, si en su vida siempre alumbró lo prohibido, en el retangueo amordazado de imposibles.” - Pág. 120

Tengo miedo é puro história chilena, o autor sita vários acontecimentos, entre eles o golpe militar, o assassinato de Allende e a guerra do pacífico. Pedro relembra com maestria as lutas diárias do povo latino-americano.

O que mais gostei do que li dele até hoje é o fato de descobrir cantoras e músicas novas, a autora nos apresenta neste romance, através do rádio da Loca del Frente nomes importantes da música popular e folclórica chilena.

“[…]entre amar y querer hay un mundo de diferencia. Te quiero con tu diferencia. No es lo mismo. Yo por ti, como dice una canción, contaría la arena del mar (con los ojos entornados). Por ti yo sería capaz de matar.” - Pág. 129

O que me leva a mais um apontamento sobre a leitura: a linguagem do livro é quase toda coloquial, a língua das ruas, das vielas, do povo. O que me fez sentir mais próximo das personagens.

“[…]el cuento terminaba de esa manera absurda, Carlos y ella arrancando en dos direcciones opuestas.” - Pág. 166


quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Entrevistando Contemporâneos & Independentes: Latinidades & Representatividade - Natalia Borges Polesso

 


"A partir desses anos é que entendi que eu também poderia escrever “de verdade” e essa suposta “autorização” que entendi existir quando li outras identidades tem a ver com uma serie de ideias que são também construídas no nosso pensamento. Ideias coloniais e normativas.

Natalia Borges Polesso

Como a literatura entrou em sua vida?

Natalia: Pela contação de histórias. Morei com meus avós por um período curto da minha infância e o que ficou marcado para mim foram os causos que minha avó contava na hora de dormir. Eu devia ter uns 6 anos, acho que foi ali que eu entendi o que era uma história; que uma pessoa podia contar uma história. Sabe quando a gente toma consciência de algo? Depois disso, outra coisa que me marcou foi ter topado com um livro de poemas na minha casa, isso já com 8 ou 9. Não tinha livros em casa, nem sei muito bem como aquela coletânea foi parar lá, sei que li “A lira do amor romântico”, do Drummond e pensei “hmmm acho que eu também sei fazer esse negócio de poesia”. Lembro bem do sentimento, daí comecei a escrever uns versinhos. Eu não sei dizer se lia pouco ou muito, mas lembro de ser uma pessoa curiosa com livros.

Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor(a)?

Natalia: Fui ter mais acesso a livros na faculdade. Morei muito tempo no interior e, apesar de frequentar a biblioteca pública da cidadezinha, acho que foi mesmo aos 17 anos, quando pude acessar a universidade que comecei a ler mais. Para além das recomendações dos professores, eu já tinha aprendido a explorar os corredores e as estamtes e fui me dedicar a ler o que eu pensava que uma estudante de letras tinha que ler: Shakespeare e a grande literatura ocidental. Digo isso hoje num tom de ironia. Uma das primeiras matérias que fiz na faculdade de Letras se chamava “Literatura Ocidental: da Ilíada à Odisseia”. É claro que essas leituras me formaram e que minha formação acadêmica foi bastante ocidental, branca, em grande parte masculina e hétero. Quando saí um pouco disso, fui encontrando os escritos que realmente amei. Caio, Cortázar, Lygia, Clarice, Marina Colassanti. Mas eu tenho a impressão de que foi só a partir de 2009, quando entrei no mestrado para trabalhar com gênero e literatura e 2010 quando também comecei a ler mais pessoas contemporâneas (e claro que nos anos subsequentes houve uma grande mudança no cenário editorial) é que minha construção como autora foi se indicando mais como um caminho. A partir desses anos é que entendi que eu também poderia escrever “de verdade” e essa suposta “autorização” que entendi existir quando li outras identidades tem a ver com uma serie de ideias que são também construídas no nosso pensamento. Ideias coloniais e normativas. Eu nunca tinha aventado ser escritora, nem mesmo depois que publiquei meu primeiro livro. Eu queria ser médica, só que os impedimentos financeiros me levaram para a docência. E que bom. Hoje não dou médica, mas sou doutora.

Consegue viver de literatura?

Natalia: Sim. Porque trabalho em várias frentes. Se tu me perguntar se consigo viver de direitos autorais, a resposta é não. Mas eu sou professora e pesquisadora em um programa de pós-graduação, atualmente (2023-2024) tenho uma bolsa CNPq/FAPERGS e também recebo alguns convites pagos para feiras, palestras, juris e outros eventos, dou oficinas e cursos, faço leituras críticas e traduções. Enfim, são muito os trabalhos que uma pessoa tem que exercer para viver de literatura. E não é só aceitar o convite e realizar o trabalho em si. É responder os emails, fazer a agenda, organizar a lista infinita de documentos que cada evento pede a depender do edital que o contemplou, fazer os envios, fazer a notas fiscais, ser secretária, assistente, contadora, realizar uma burocracia imensa que por vezes até nos impede de escrever. Mas é isso. Vive-se de literatura, na precariedade da autonomia e do fazer freela, sem direito a aposentadoria, seguridade social, nada disso. Eu acho que a profissão de escritor/a é um tanto recente, entende? Antes quem poderia se dar ao luxo de escrever, talvez já tivesse um outro trabalho que sustentasse esse vício horrendo que é a escrita. Ou talvez fossem herdeiros. E como eu não sou herdeira nem ganhei na mega ainda, a peleja é grande.

Em uma entrevista sua - para o canal Bondelê no Youtube - você diz: “a gente precisa furar essa grande mídia preguiçosa para que leiam (as margens, o que se produz na periferia)”, você criticava e com razão quando te divulgavam falando que uma “desconhecida superou Veríssimo e Fonseca”. Na época você tinha ganhado o Prêmio Jabuti com Amora. Queria saber se ainda pensa igual? Viu alguma mudança na mídia literária brasileira nesses anos?

"Não dá pra fazer crítica literária com ferramentas supostamente universais que foram pensadas a partir de branquitute, cisheteronormatividade, regionalismo sudestino, urbano, etc. É meio burro quando não mau-caráter.

Natalia Borges Polesso


Natalia: Penso igual porque as coisas não mudaram tanto assim. Eu acho que alguns de nós escritores/as temos mais trânsito, porque, o mercado editorial também mudou assim como a relação das pessoas leitoras com a leitura e com as pessoas autoras. E também acho que eu tenho mais trânsito, como escritora. Penso que há pessoas mais plurais fazendo crítica sim, mas, de modo geral, a crítica e a universidade ainda têm uma grande lacuna de letramento estético e teórico. Tudo é muito estruturalista e pós-estruturalista. As ementas, e digo isso como professora, pouco mudaram. Tenho muitos alunes que me dizem “a primeira vez que li algo decolonial foi contigo”. Acho que poucos são os formadores e educadores, dentro da universidade, que pensam as bases das perspectivas de onde está sendo produzida uma literatura muito viva hoje. Isso cria um abismo de compreensão na leitura. Não dá pra fazer crítica literária com ferramentas supostamente universais que foram pensadas a partir de branquitute, cisheteronormatividade, regionalismo sudestino, urbano, etc. É meio burro quando não mau-caráter. Sempre que faço alguma fala ou palestra em universidades, pergunto como estão as ementas dos cursos. Quando digo que as coisas não mudaram tanto assim, é porque as respostas me dizem isso. Acho que o que falta a nossa crítica é certo letramento estético, formação mesmo, deslocamento de si. Ela ainda está fixada em certas imagens e construções de identidade, sentido e discurso de quando a literatura era pouco plural e isso a pesquisa do perfil do autor e do escritor, da professora Regina Dalcastagne, mostra, apesar do seu viés. Mas aqui eu poderia escrever um artigo inteirinho. Isso é uma reflexão minúscula que deixo.

Quais são suas referências literárias?

Natalia: Há escritores e escritoras que marcaram minha formação. Alguns já citei Caio, Cortázar, Lygia, Clarice, Marina Colassanti, Drummond, poderia adicionar, Virginia Woolf e Oscar Wild. Mas acho que minhas referências hoje são mais as pessoas que escrevem comigo contemporaneamente. E de algumas delas tenho a sorte de ter a amizade. Por exemplo, acompanho há tempos o trabalho de cronistas e dramaturgas como Cidinha da Silva e Paloma Franca Amorim, gosto muito dos contos da Veronica Stigger e do Leo Tavares, romancistas como Luciany Aparecida e Jeferson Tenório me comovem demais. Recentemente, li o Ressuscitar Mamutes, de Silvana Tavano e gostei demais, assim como o livro de poemas Rosameniniho, de Marcondes FH. Enfim, a literatura contemporânea brasileira pulsa. Eu poderia citar aqui também as estrangeiras que tenho lido como a ganhadora do Nobel, Han Kan, ou as latino-americanas como Mariana Enriquez, Brenda Lozano. Acho que aprendo muito lendo quem está escrevendo junto comigo neste tempo.

No prefácio da nova edição do ‘Amora’ você diz “Eu queria...explorar os destroços. Escrever sobre as coisas que estavam submersas em mim, sobre aquilo que eu tinha perdido, sobre aquilo que eu nem sabia que existia dentro de mim. Foi isso que eu busquei.” Após todos esses anos que se passaram, com os feedbacks e releituras – se é que houveram – você acha que atingiu o que queria com o Amora? E o que Natalia que escrevia o livro encontrou no processo?


Natalia: Eu acho que sim. Sou muito feliz e orgulhosa dos caminhos do Amora. É um livro que me emociona nos encontros que tenho com as leitoras. Desde sua publicação, até hoje, encontro pessoas que me contam como foram profundamente tocadas pelo livro, não raro essas pessoas ficam emocionadas ao me contar. Eu acho que isso diz do alcance e do poder de um livro. Não é tanto sobre quantas pessoas, mas quanto na pessoa, entende? A Natalia que escreveu o livro continua se surpreendendo.

Lida bem com as críticas?

Natalia: Sim. Acho que lido bem, mas não deixo de ter a minha crítica sobre a crítica hahaha, como já disse. Mas essa é a Natalia pesquisadora e professora falando. Perguntas ou comentários horrorosos da crítica já me levaram a lugares muito bons da pesquisa. Por exemplo, uma vez, um entrevistador me perguntou se com Amora eu queria “escancarar o universo lésbico”. São tantas camadas de bizarrice numa pergunta dessas que não dá pra não responder com senso crítico. Primeiro a escolha do verbo escancarar, que é violento no contexto; depois a pressuposição da existência de um universo lésbico, que eu deveria ser capaz de mostrar melhor, porque decerto, ele e outras pessoas não conseguiriam ver. Estou certa de que muita gente não vê problema na pergunta, assim como acho que o próprio entrevistador não viu, mas isso não quer dizer que os problemas não estão lá. Respondi a ele com humor que se houvesse um universo lésbico, eu estaria lá e não neste compartilhado.

Como está sendo o retorno (feedback) das leituras do seu livro novo, o ‘Condições ideais de navegação para iniciantes’?

Natalia: Das pessoas leitoras está sendo muito bom. Acompanho com entusiasmo. Além disso, até o momento saíram, duas resenhas e comentários no youtube, os dois bem positivos. Livros de contos não são muito comentados pela grande mídia, então não to esperando muita coisa.


O que seria de sua vida sem as letras?

Natalia: Bah, não sei. Não quero nem tentar fazer esse exercício de imaginação.

Sem pressão: está trabalhando em algum livro novo no momento?

Natalia: Estou sempre trabalhando em algum livro. Este ano, retomei Penelope Obscura, um romance que comecei em 2020, mas que deixei de lado para terminar o Condições ideais e o Foi um péssimo dia. Ele faz parte de uma trilogia ecológica que comecei com A extinção das abelhas. Só que, neste momento, estou dando mais atenção ao meu grupo de estudos e à pesquisa do pós-doc que termina em breve.

Eu acho que já li quase todos os seus livros e sempre me pego numa arapuca, poética sim, mas também forte porquê não? A minha dúvida, e de todos que ainda não leram o ‘Condições ideais de navegação para iniciantes’ é, o que devemos esperar desse livro novo?

Natalia: Esteticamente, uma junção de Recortes para álbum de fotografia sem gente e Amora. Contos mais longos em comparação aos dos livros mencionados, mas com a mesma carga dramática e tentativa de tensionamento de imagens.

Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Natalia: Escreva. Não tem outro jeito, escreva muito. Escreva com e sem propósito. Faça exercícios de escrita. Compartilhe seus escritos com um grupo de escrita. Faça alguma oficina legal. Ouça as críticas dessas leituras, esse é o momento de trabalhar o texto e repensar as decisões. Leve tudo em consideração, ponha seu trabalho e sua escrita em dúvida, mas não de maneira depreciativa, e sim como perspectiva mesmo. Depois decida se vai seguir ou não com a ideia.









Natalia Borges Polesso é escritora e tradutora. Publicou Amora (2015), Controle (2019), Corpos secos (2020), A extinção das abelhas (2021) e Foi um péssimo dia (2023), entre outros. Ganhou e foi finalista de diversos prêmios literários, como Jabuti, São Paulo, Açorianos e Minuano. É pesquisadora de pós-doutorado na PUCRS, com bolsa CNPq/FAPERGS. Sua pesquisa está centrada no conceito de Antropoceno e visa observar as relações coloniais e a ecologia, na literatura brasileira contemporânea. Em 2024, volta aos contos com Condições ideais de navegação para iniciantes.