"a-maior-função-do-homem-no-mundo-é-transformar-se-em--literatura" - Reinaldo Santos Neves

sexta-feira, 30 de junho de 2023

Guia Anônima [RESENHA]

 




Já vou começar com uma crítica sobre o estilo de pontuação; eu achei que a escassez dela torna o texto com parágrafos longos de difícil leitura e um pouco cansativo. Mas esse estilo de texto é uma marca da escritora, já que me parece ser o objetivo do projeto gráfico do livro, que a capa já denuncia.

“[…] quem não toma porrada nem morre por ser quem é nem sempre sabe que viver é privilégio[…]” - Pág. 15

Em uma das páginas corridas, o que parece ser a mente da personagem, a autora cospe no leitor lembranças amorosas, tece crítica ao imperialismo, a crise humanitária, ao machismo e a comunidade literária, sempre ferina e escrachada, sem meias palavras.

“[…] se não endereçarem essa desgraça imperialista vamos ali na venezuela pegar o petróleo deles oferecer ajuda humanitária[…]” - Pág. 18

Em ‘Filha de Sara’, a fofoqueira ao telefone destrincha a vida das conhecidas e o que vê a sua volta, uma personagem preconceituosa em vários níveis, mas que - ao falar de seu trono privilegiado - mostra o retrato da sociedade real e cruel que a cerca. A hipocrisia transcrita em nove páginas.

“… ô cambada de vagabundos! É contra o que hoje? Reforma trabalhista?[…] Nos Estados Unidos e na Europa não tem essa regalia toda de carteira assinada não… e olha a diferença!” - Pág. 31

Junia Zaidan escreve contos de denúncia, sobre uma humanidade a muito distante, em textos poéticos, duros e profundos.

“Chorei pelo desamparo que é a vida. Guta diz que chorar em Paris é mais chique. Vai saber por quê, pra mim é tudo igual: tristeza e vergonha lá e cá, fome lá e cá, desespero lá e cá. Só muda o endereço.” - Pág. 77

Por fim há algumas passagens históricas importantes sobre cenários críticos na América Latina, sobretudo envolvendo os militantes na época da ditadura, período esse que assombrou vários países vizinhos.

“… com a participação dos coletivos de slam Botocudos e Nísia, na batalha de poesia, além de Carlos Papel e outros artistas pela democracia, logo mais. Estamos aqui pelos trabalhadores, contra a retirada de direitos. Vamos ganhar as ruas e mostrar a esse governo a soberania popular…” - Pág. 104

Registro das lutas populares, contra o desgoverno entre 2019 e 2022 e pelos direitos dos trabalhadores, um marco no Brasil em atos políticos.

Reflexão sobre o etarismo, sobretudo a respeito do corpo da mulher e o protagonismo de personagens mais velhas também são frequentes nos contos de Junia Zaidan.
O tempo é também um personagem recorrente em ‘Guia Anônima’.

“Nada falamos ante a memória tão viva pulsando em nossos corpos. Sabemos quem somos um no outro e é bom não sermos mais jovens. O tempo não se move diferente de antes.’ - Pág. 109

A melancolia dos dias e a solidão acompanham as personagens do livro, parceiras genuínas martelando peito e mente, corpo e alma, em danças assombradas. ‘Guia Anônima’, em seus contos, apresenta relatos zonzos de quem vive a beira da loucura e ela parece tão real…

“Decerto a morte psíquica não costuma figurar nas estatísticas policiais, mas nem por isso deixa de ser morte.” - Pág. 114

O genuíno sair da rotina e quebrar um sistema de moer corpos, decepar corações e cuspir sentimentos. Uma tarde no parque com Ravi e seu dono vira poesia na movimentação dos dias no conto ‘Dois casos com cachorros’.

“[…] toda fabulação encerre o vivido[…]” - Pág. 113


sábado, 24 de junho de 2023

Trechos que te farão querer ler o ‘LUGAR DE FALA’





🖤📝 “Entendendo a linguagem como mecanismo de manutenção de poder…” - Pág 14;

🖤📝 “Ao persistirem na ideia de que são universais e falam por todos, insistem em falar pelos outros, quando, na verdade, estão falando de si ao se julgarem universais.” - Pág 31;

🖤📝 “Kilomba rompe com a universalidade em relação aos homens também mostrando que a realidade dos homens negros não é a mesma da dos homens brancos, ou seja, evidencia que também em relação a esses é necessário fazer a pergunta: de quais homens estamos falando?” - Pág 39;

🖤📝 “O não reconhecimento de que partimos de lugares diferentes, posto que experienciamos gênero de modo diferente, leva à legitimação de um discurso excludente, pois não visibiliza outras formas de ser mulher no mundo.” - Pág 51;

🖤📝 “Foucault e Deleuze, por exemplo, não rompem totalmente com o discurso hegemônico ao terem a Europa como centro de análise.” - Pág 72;

🖤📝 “O não ouvir é a tendência a permanecer num lugar cômodo e confortável daquele que se intitula poder falar sobre os Outros, enquanto esses Outros permanecem silenciados.” - Pág 78/79;

🖤📝 “Pensar lugar de fala seria romper com o silêncio instituído para quem foi subalternizado, um movimento no sentido de romper com a hierarquia, muito bem classificada por Derrida como violenta.” - Pág 89;





💙📝 Sobre a autora: Djamila Ribeiro nasceu em Santos. É mestre em filosofia política, colunista do jornal Folha de São Paulo e foi secretária-adjunta de Direitos Humanos e Cidadania do município de São Paulo. Em 2018, integrou a lista das cem pessoas negras mais influentes do mundo com menos de quarenta anos, distinção apoiada pela ONU. Em 2019, recebeu do governo francês o título de personalidade do amanhã e ganhou o prêmio holandês Prince Claus por suas ações em defesa dos direitos humanos e da justiça social.


 

quarta-feira, 21 de junho de 2023

II FESTIVAL LITERÁRIO DE POESIA NEWTON BRAGA

 

a SEMCULT/PMCI e Academia Cachoeirense de Letras (ACL) institui o 
II FESTIVAL LITERÁRIO DE POESIA NEWTON BRAGA



O Município de Cachoeiro de Itapemirim, por intermédio da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, no uso de suas atribuições legais, torna público o regulamento do EDITAL Nº006/2023 – FESTIVAL LITERÁRIO DE POESIA NEWTON BRAGA, destinado a autores (pessoa física) maiores de 18 anos, residentes em todo território nacional, com o tema principal celebrar os 112 anos de NEWTON BRAGA


II FESTIVAL LITERÁRIO DE POESIA “CIDADE DO INTERIOR” tem o objetivo de celebrar e reconhecer poetas, estreantes ou com obra publicada, a partir da valorização da figura do Poeta Newton Braga, Patrono da Cadeira 02 da Academia Cachoeirense Letras e da Cadeira 07 da Academia Cariaciquense de Letras.


Os 20 primeiros colocados receberão um CERTIFICADO da ACL, bem como o livreto impresso. Além da sua publicação virtual na edição especial dos 112 anos de Newton Braga no canal do YouTube da SEMCULT.


O resultado final do II FESTIVAL LITERÁRIO DE POESIAS “NEWTON BRAGA – CIDADE DO INTERIOR” será divulgado no site www.cachoeiro.es.gov.br na aba transparência / editais e nas redes sociais da PMCI e SEMCULT – Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Cachoeiro de Itapemirim.



Os interessados deverão realizar as inscrições no período de 15 de junho de 2023 às 23h59min do dia 30 de julho de 2023, pelo e-mail festivalpoesianewtonbraga@gmail.com . O Edital e seus anexos, estão disponíveis no site Prefeitura de Cachoeiro de Itapemirim - ES , na aba transparência / editais, e será divulgado em Diário Oficial do Município.



sábado, 10 de junho de 2023

Traiu ou não traiu? (RESENHA)

 




Há quanto tempo eu não lia um clássico, leitora (essa forma de tratamento marcou este autor pra mim)

O escolhido da vez foi ‘Dom casmurro’, obra-prima de Machado de Assis, que eu li em um clube de leitura: o Quintal de Rosalina.

“Casmurro… lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando!” - Pág. 06

Se você espera um livro com traições e reviravoltas e afins não é de Dom Casmurro que você precisa, aquela famosa frase: “… Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada.“ é apenas uma pequena fração do romance.

Essa especulação em torno das personagens Capitu e Bentinho é só mais uma mostra da genialidade do autor, o restante é o quão grande a obra se tornou e como Machado foi inteligente de deixar espaço para que o leitor imaginasse e dialogasse com o próprio livro.

“… vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo.” - Pág. 10

Dom casmurro é um romance de folhetim, publicado antigamente em jornais e periódicos da época, diariamente e com um texto bem memorialístico.

Dentre os temas abordados no livro de Machado temos o principal deles, por qual é desenvolvida a narrativa; a descoberta do primeiro amor, o jogo da conquista, além do ciúme possessivo da personagem principal.

“Êsse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe fôsse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser minha. Naturalmente também por ser a primeira.” - Págs. 41/42

O escritor também encaixa várias críticas pontuais durante o livro o que torna um texto mais rico: ele fala da grafia da época, sobre etarismo, machismo, patriarcado e capitalismo, temas ainda hoje abordados e que perpassam a cultura e a literatura brasileira.

“Os sonhos antigos foram aposentados, e os modernos moram no cérebro da pessoa. Êstes, ainda que quisessem imitar os outros, não poderiam fazê-lo; a ilha dos sonhos, com a dos amôres, como tôdas as ilhas de todos os mares, são agora objeto da ambição e da rivalidade da Europa e dos Estados Unidos.” - Pág. 217

Uma das coisas que tem me roubado a atenção, e que eu presto nos livros que eu leio, é o dever da religião na sociedade.

Machado de Assis nesta obra nos aponta que as personagens tem um medo do pecado, do castigo divino. O que me faz refletir sobre o dever do ‘sagrado’ na condição do ser, e que ele nos mostra através de Dom Casmurro; seus deveres e suas penas.

“São Pedro, que tem as chaves do céu, abriu-nos as portas dêle, fêz-nos entrar, e depois… recitou alguns versículos da sua primeira epístola: “As mulheres sejam sujeitas a seus maridos… Do mesmo modo, vós, maridos… tratando-as com honra, como vasos mais fracos…” - Págs- 322/323

A cena que mais me marcou, a mais pesada, é a mostra da escravização da época: “… Só então reparei nisso; apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido, ou da pessoa, como João Fulo, Maria Gorda, ou de nação como Pedro Benguela, Antônio Moçambique… alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados.” - Pág. 297

Eu poderia falar de desse livro por mais algumas linhas e páginas, mas acho que por aqui ta bom, agora quero saber de você: já leu alguma coisa de Machado de Assis? E Dom Casmurro, o que achou do livro?




Espero que você tenha gostado,




Até a próxima!


terça-feira, 16 de maio de 2023

Entrevistando Contemporâneos & Independentes – Eglair Carvalho

 





Como a literatura entrou em sua vida?

Eglair: Fui autodidata em leitura e escrita a partir dos 04 anos de idade. Encontrei jogado na rua o livro Arca de Noé, de Vinícius de Moraes. Olhei para a história e simplesmente, passou a ter sentido para mim. Foi a descoberta do meu mundo de Nárnia. Aos oito anos comecei a escrever um jornal do bairro juntamente com o, hoje, jornalista, Alex Pandine. Criamos também um jornal cultural chamado “Corações e Mentes”. Desde então, não parei de escrever.



Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor?

Eglair: Fundamental. É minha fonte inesgotável de inspiração e ressignificação de quem eu sou. Meus textos são intertextuais. Gosto de conversar com os autores que leio e deixar que minha escrita seja impregnada por outras vozes.



Consegue viver de literatura?

Eglair: Sou professor de português e, ao longo da minha carreira, eu me especializei em literatura. Em minhas atividades de ensino, seja no uso da gramática ou na formação de professores, aproprio-me da arte literária. Nesse sentido, vivo financeiramente das letras. Como escritor, é complicada a sobrevivência financeira. Todavia, minha escrita abriu portas para conhecer outras culturas, pessoas de pensamentos diferentes. É um processo contínuo de aprender e desaprender. Nos tempos de pandemia, sobrevivi graças à literatura, principalmente para manter minha saúde mental.



Qual a maior dificuldade que encontra para chegar ao público leitor?

Eglair: Em primeiro lugar não há, de forma estrutural e estratégica, políticas de fomento à leitura e escrita. Em segundo, as desigualdades sociais históricas em nosso país, tornam o livro um bem de consumo caro. Por fim, acredito que as temáticas que escolho afastam-me de alguns leitores. Por exemplo, em “Diário de Minhas mortes” abordo o abuso sexual infantil. É um tema que a maioria não gostaria que fosse abordado, pois traz à luz o quanto o ser humano é cruel e a sociedade se esconde num véu de hipocrisia.



Quais são suas referências literárias?

Eglair: Muitas. Gosto de textos grotescos como “A metamorfose” de Kafka, da escrita filosófica e psicológica de Clarice Lispector, da simplicidade da música popular e dos textos contemporâneos, é claro. As minhas referências são determinadas pelo projeto literário que eu estiver escrevendo. Gosto de estudar, ler, reler, fazer novas descobertas para, depois, começar meu processo de escrita.



Lida bem com as críticas?

Eglair: Considero-as inevitáveis e preciosas. Nasci na miséria, gay e tímido, muito tímido. Fui forjado por várias formas de críticas desde criança. Sempre aprendo com elas. As positivas eu agradeço, as construtivas eu me apego a elas e as negativas do ponto de vista destrutivo, eu entrego ao Universo.



Está trabalhando em algum livro no momento?

Eglair: Terminei, há pouco, um livro infantil, cujo tema é “A Porta que nasceu torta na cidade só de retas” que aborda a importância de aceitarmos as diferenças e aprender a nos valorizarmos. No momento, estou escrevendo dois projetos “A Feia Acordada”, outa obra infantil que desta vez irá dialogar com as redes sociais e outro livro de Memórias chamado “A escola que me partiu” – nele falo de um ideal de escola que não existe mais, perdemos o encantamento. Agora, sinto o espaço escolar como um ringue de vaidades, violência, ambição e de desumanização.



O que seria de sua vida sem as letras?

Eglair: Não seria. Minha identidade como pessoa, sujeito e cidadão que me tornei foram construídos por elas, as palavras, as letras e os sons que preenchem o rio caudaloso de minha alma.



Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Eglair: Gostaria, primeiro, de quebrar um mito: quem lê bem escreve bem. Não é verdade. Escrever é outra competência, é uma entrega que exige a observação do mundo, a empatia pelas pessoas, uma busca inacabada de nos compreender. Nesse sentido a dica é: simplesmente escreva, reescreva e aprenda o que suas letras estão lhe dizendo.









Produtor cultural. Poeta. Dramaturgo. Cronista. Elaborador de projetos pedagógicos, culturais e de captação de recursos. Escritor de narrativas acerca de memórias afetivas e de diversidade. Membro do Coletivo Diversidade Literária e Co-fundador da Academia Capixaba de Letras da Diversidade. Produção artística: Fagulhas do Tempo - 1991 - esgotado), As loucuras de Leopoldo (Teatro- 1994 - esgotado) . Versos explícitos (poesia - 2003 - esgotado) Desencontros - Teatro 2004) - esgotado) A voz da Felicidade (Monólogo 2006 - esgotado). Diário de minhas mortes (Narrativa de memórias - 2022). A Porta Torta (narrativa infantil - 2023 - inédito). A Escola que me partiu (Crônicas - 2023 - inédito).

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Alguns contos e minicontos de Lacy Ribeiro





TARDE DE AUTÓGRAFOS 



O escritor, devidamente sentado à mesa onde começaria a autografar sua obra, inquieta-se quando vê se aproximar o menino sujo que estende uma folha de papel almaço encardida. 
Lê o cabeçalho: AJUDEM-ME A COMPRAR UMA CAIXA DE VENDER PICOLÉ. 
Segura o queixo com os punhos fechados e desvia o olhar furioso para as ramagens das árvores da pracinha em frente. 
O bem-te-vi pára de cantar. 
O menino pede, então, um exemplar dos livros. 
Indignado, o escrito abraça os livros e dá o ultimatum. 
O menino se retira, tropeçando nos sapatos dos que começam a entrar. 
Aliviado, o escritor arma a caneta para o primeiro autógrafo.



OS BEIJOS 



Quando ele a tomava nos braços e a beijava, ela se diluía e saía de baixo daquele corpo, passava pelo buraco da fechadura e entrava no apartamento ao lado onde os beijos da outra eram incontestavelmente, mais dentro da boca.



(contos do livro 'Contos de Réis' - 1986)



A CEGA 



A moça cega surgia da esquina da farmácia São Lucas tateando o espaço, ajudada pela bengala. Não se viam seus olhos detrás das lentes escuras, mas ela nos percebia e nos desejava bom-dia sorrindo. 
Era comum sermos cutucados pela sua bengala, nas costelas, nas nádegas e nas pernas. Quando ela acertava alguém, pedia 53 desculpas e sorria. O garoto que vendia jornais é que não gostava muito dela, pois, agachado ao lado da pilha de jornais, de vez em quando levava umas bengaladas na cabeça. Quando ele notava que ela se aproximava com o seu toc-toc, levantava-se e colocava-se na defensiva. Se, por acaso, esquecia-se ou distraía-se por qualquer coisa, era acertado em cheio na cabeça. Mas, o pequeno jornaleiro, como os outros, ajudava-a, nas madrugadas chuvosas, amparando -a na calçada escorregadia. 
Era pontual. Chegava às 5:15 e não esperava muito pelo ônibus de Vila Velha. Recusava ajuda na hora de subir e, ágil, embarcava para o trabalho, sorrindo para a vida que lhe oferecia os dias como eternas madrugadas.


AS NAMORADAS


Quando o jorro de luz, saído das portas subitamente levantadas da padaria, as iluminou, elas se separaram e soltaram as mãos. Baixaram a cabeça e arredaram-se para o cantinho escuro da calçada. Voltaram a se aproximar e a dar as mãos, timidamente.
As pessoas as olhavam de soslaio, mostrando, com meneios de cabeça e risinhos debochados, o espanto.
A que ficou na calçada teve um ataque de tosse, talvez pela fumaceira preta do cano de descarga do ônibus que lhe roubara a amada.


(contos do livro 'Avenida República' - 1987)




Lacy Fernandes Ribeiro, poeta, contista, romancista, nasceu em Barra de São Francisco, ES, em 1948, tendo vindo para Vitória ainda jovem, para estudar e trabalhar, como foi o destino de tantos capixabas de sua geração. Era o dia 31 de março de 1964, data em que se iniciava a ditadura militar, que marcaria os vinte “anos de chumbo” nos quais viveríamos a repressão, o medo, a falta de liberdade e que se refletiria na literatura de toda uma geração, de uma forma mais ou menos realista.

Lacy Ribeiro seguia uma cartilha ideológica e literária. Militante da esquerda, filiada ao Partido Comunista do Brasil, foi advogada, secretária de multinacionais, aproveitando “tudo que extrai de suas experiências ombro a ombro com o povo humilde, o que trabalha, o que fica desempregado, o deslembrado dos que dominam”, conforme consta da sua biografia, onde também se lê: “Lacy Ribeiro, escritora maldita, bendita, iluminada, querida por todos e mal entendida por alguns, faz uma literatura diversificada: poesia, contos, crônicas, romances, ensaios, etc” (In: Contos bastardos, 1991)

quinta-feira, 4 de maio de 2023

‘Alguns trocados’: ‘Contos de Réis’ de Lacy Ribeiro (RESENHA)

 



Lacy é fruto da ditadura, chegou em Vitória em 1964, vinda de barra de São Francisco e muito do que lemos em seus textos são relatos de um período de censura e repressão.

Este é seu segundo livro, o primeiro de contos, lançado em 1986, Cátedra Editora (SP) gênero que a consagraria anos mais tarde. ‘Contos de Réis’ é uma seleção de contos e minicontos que grita, delata e escreve contra a tirania da época.

"De longe, podiam-se distinguir a silhueta do cão que abanava o rabo enquanto o amigo lhe afagava a cabeça, e o semblante do homem, refeito por aquela muda confissão de afeto." - Pág. 48   

Junto de Milson Henriques, Amylton de Almeida, Waldo Motta, Fernando Tatagiba, entre outros escritores da década de 80, Lacy Ribeiro integrava a ‘geração marginal’ no Espírito Santo.

Lacy foi assassinada brutalmente Janeiro de 2013 aos 64 anos.

Lacy Ribeiro em seus ‘Contos de Réis’ dá voz sobretudo aos corpos marginalizados, dando o devido protagonismo. Em seus textos enxergamos os meninos de rua, travestis, ambulantes, prostitutas, pedintes, homens e mulheres a margem.

"- O que mais me impacienta são estas moscas... como são imediatistas!" - miniconto 'O moribundo' - Pág. 75

Lacy escreve de forma certeira sobre a crueza da vida, uma escritora que captou vários tipos de personagens das ruas por onde passava. No fim das contas - e de cada conto - ela descreve com precisão de detalhes a desumanização de muitos e a humanidade de poucos.

O amigo, escritor e jornalista, Fernando Tatagiba escreveu: “seus contos certamente revolverão o espírito do leitor lhe deixarão, no canto da boca, um travo de terror, espanto e revolta diante das diversas formas de injustiças sociais.”

A escritora traz também a tona a hipocrisia da ‘tradicional família brasileira’, escancara a verdade do ‘pai exemplar’ que trai a esposa com seu amante jovem, e critica a burguesia, o capitalismo e o patriarcado da sociedade.

Apesar de ser um livro curto, de apenas 75 páginas, é uma obra densa, pesada, e que trata de assuntos pouco explorados antigamente. Textos que são hoje essenciais em rodas de discussões, clubes de leituras, não é um ilvro vazio, pelo contrário, tem muito a agregar na atualidade.

Alguns contos em tons de deboche e ironia ditam o ritmo da leitura, obra considerada “excessivamente realista, crua, às vezes sem ser fácil ou malcuidada” por Francisco Aurelio Ribeiro (AEL, estudioso da literatura feita no Espírito Santo). Textos zombadores da ditadura militar, da burguesia local e até mesmo dos artistas, que se isentavam das discussões importantes que ela (Lacy Ribeiro) traz no livro.

sábado, 22 de abril de 2023

Heloisa Buarque de Hollanda é eleita para a Academia Brasileira de Letras

 

A escritora e crítica cultural vai ocupar a Cadeira 30, que era da escritora Nélida Piñon





Heloisa Buarque de Hollanda nasceu em Ribeirão Preto (SP), em 1939. É escritora e professora de teoria crítica da cultura na UFRJ, onde coordena o Programa Avançado de Cultura Contemporânea, o projeto Universidade das Quebradas e o Fórum Mulher e Universidade. É autora e organizadora de muitos títulos, como Tendências e impasses (1994) e Explosão feminista (2018).

‘Poesia marginal’

A antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, foi lançada em 1976. Nessa coletânea está a chamada “poesia marginal dos anos 70”.

26 Poetas Hoje, na época do seu lançamento, causou polêmica e recebeu críticas por todos os lados: a Academia Brasileira de Letras, por exemplo, não conseguia ver nada além de um simples valor “sociológico” naqueles “sujos” e “pornográficos” versos produzidos por ilustres desconhecidos.

A ‘geração do mimeógrafo’

O termo “marginal” foi cunhado pela própria Heloisa, organizadora da antologia, e não remete à noção de fora-da-lei, como poderia supor o leitor mais desavisado. Na verdade, ele se aplica a autores que tinham dificuldade para emplacar suas obras em editoras de grande porte. Não é à toa, portanto, que eles foram imortalizados pela expressão “geração do mimeógrafo”, já que se valiam dessa máquina para levar ao público consumidor, de forma ágil e barata, livros de pequena tiragem bancados por conta própria.

Entretanto, 26 Poetas Hoje é emblemático porque fez justamente o contrário: abriu as portas do mercado editorial para a maioria dos que participaram da antologia. Além disso, “marginal” era aquele que traduzia em versos de postura anti-intelectual os problemas do seu cotidiano, revelando sintonia com as mudanças políticas e comportamentais por que passava o país. O momento era de repressão e censura impostas pelo governo militar, mas também se caracterizava pela assimilação da cultura pop, que o tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil ajudou a introduzir.

A ABL teve que deitar

A escritora e crítica cultural vai ocupar a Cadeira 30, que era da escritora Nélida Piñon. Ela recebeu 34 dos 37 votos.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Entrevistando Contemporâneos & Independentes – Deane Monteiro Vieira

 




Como a literatura entrou em sua vida?

Deane: Aprendi a ler por volta dos meus 5 anos de idade, em virtude da alfabetização da minha irmã mais velha. Gostava de competir com ela por meio dos saberes alcançados. Jamais lhe deixei alcançar o nível mais elevado, sem que eu estivesse grudada nela. E, foi deste desejo, que lia sem parar, e que peguei o gosto por conhecer histórias arrebatadoras que mexiam com o meu coração, com a minha mente e com a minha alma.

Um dos primeiros livros que li em minha infância que sacudiu a minha existência, foi o “O meu pé de laranja lima” de José Mauro de Vasconcelos. Trata-se de um enredo muito profundo que destacava a amizade subjetiva e fantasiosa de um menino com uma árvore, que foi capaz de matar a solidão do menino e a minha, mesmo estando acompanhados em família.

Depois, parti para as obras de Monteiro Lobato e me encantei com a sagacidade de Emília, uma boneca falante. E, mais tarde, vieram os títulos da coleção Vaga-lume da Editora Ática e o preenchimento das folhas didáticas com as perguntas sobre cada livro, que passei a ter mania em respondê-las.

Vale ressaltar, que vi de uma família de camada popular - com pouco acesso a literatura no interior do meu lar, exceto a leitura da Bíblia feita por meu pai - e que nas escolas públicas que passei era inexistente o lugar que chamamos de biblioteca.

No entanto, motivada pelo meu desejo interno de leitura para aquisição dos saberes, que já comentei acima, sempre procurei meios para que pudesse ler os títulos que queria, como por exemplo, pedir emprestado aos meus amigos, aos meus professores ou mesmo, comprar com dinheiro que recebia das aulas particulares dadas na escola em que criei na garagem do meu pai, até os meus 15 anos.



Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor?

Deane: Foi na condução do entendimento da ambivalência e da contradição das vidas dos personagens que se igualava a minha vida interior. Descobri pela literatura que ninguém é uma coisa só. E, que inclusive o autor, perde o controle dos seus personagens quando os publica. De modo, que é na polifonia da leitura e da escrita que a humanidade pode testar o seu espírito democrático e livre.



Consegue viver de literatura?

Deane: Consigo viver da literatura, como já disse, porque ela funciona para mim, como um alimento para a minha alma, no entanto, economicamente, como sou uma escritora independente com o respectivo selo “Editora NarraTiana”, além da escrita diária, preciso divulgar e vender os meus títulos, que ainda só pagam os custos com a publicação. Nunca participei de nenhum incentivo ou fomento cultural porque a burocracia me adoece muito internamente. Como minha saúde mental não anda muito bem nos últimos anos, e caso você queira saber os motivos disso, indico o meu vídeo postado no Youtube de nome “Texto-testemunho de uma professora burnoutada”, que esclarece porque tenho poupado minha mente da grande gaiola invisível, que é burocracia e o controle estatal sobre os produtos culturais, que podem minar a criatividade dos artistas e escritores por conta do engessamento dos editais.



Quais são suas referências literárias?

Deane: Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade e Elena Ferrante.



Lida bem com as críticas?

Deane: Ainda não as recebi de modo formal.



Está trabalhando em algum livro no momento?

Deane: Sim. Com os meus mini romances e outros escritos paralelos.



O que seria de sua vida sem as letras?

Deane: Seria uma vida morta e sem respiro diante da exaustão do repetir da vida.



Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Deane:

E.S.C.R.E.V.A.

E.S.C.R.E.V.A.

E.S.C.R.E.V.A.

E.S.C.R.E.V.A.

E.S.C.R.E.V.A.

N.U.N.C.A

P.A.R.E

D.E.

E.S.C.R.E.V.E.R





Historiadora, professora doutora e poetisa social de si, que abusa da primeira pessoa do singular para construir as suas escritas terapêuticas que podem ser lidas no perfil @dor_arte_profa. Em seu canal NarraTiana no YouTube, pode ser encontrado o vídeo “Texto-testemunho de uma professora burnoutada” que tem ajudado as pessoas que experienciam o convívio com a Síndrome de Burnout e a depressão, em se posicionarem pela luta por políticas de reparação com a saúde mental dos trabalhadores.


sábado, 1 de abril de 2023

Mais uma riqueza explorada (RESENHA)

 



“[…] decidi que este lugar é podre até a medula. Quero cair fora.” - Pág. 135

Este livro foi o primeiro de autoria norte-americana que eu li em 2023, livro esse que ampliou minha visão sobre o domínio americano pelo mundo, sobretudo em um país como Porto Rico: pouco conhecido e estudado por aqui.

“Havia algo de estranho e irreal em toda atmosfera daquele mundo onde eu acabara indo parar. Era divertido e ao mesmo tempo vagamente depressivo. Ali estava eu[…] correndo por uma cidade semilatina[…] e tudo acontecia na velha e fascinante ilha de Porto Rico, onde todos gastavam dólares americanos, dirigiam carros americanos e ficavam sentados ao redor de roletas, fingindo estar em Casablanca.” - Pág. 60/61

No livro acompanhamos Paul Kemp, alter-ego do escritor Hunter S. Thompson, um jornalista enviado dos Estados Unidos para trabalhar em um jornal a beira da falência em Porto Rico.

“[…] o Departamento de Estado dos EUA chamava Porto Rico de propaganda dos Estados Unidos no Caribe - a prova viva de que o capitalismo pode funcionar na América Latina.” - Pág. 92

Ao chegar em Porto Rico Paul se vê em meio à uma crise - que afeta diretamente o poder de compra do povo já que a inflação dos impostos em Porto Rico está altíssimo -, além de que o mote do romance é a “industrialização” e o crescimento hoteleiro no local, sobretudo de empresas norte-americanas “colonizando“ mais uma ilha onde descobriu-se o poder de sua extensão de terra.

“Se eu fosse você, ficaria longe da cidade. Os nativos ficam meio enlouquecidos. As melhores festas acontecem nos barcos. A turma dos iates faz seu próprio carnaval.” - Pág. 154

Só pra contextualizar, Hunter Thompson escreve um estilo de literatura inventada por ele chamada ‘gonzo', onde o repórter (o que ele foi por muito tempo na vida) vive a sua própria reportagem. Vemos em ‘Rum: diário de um jornalista bêbado’ a influência desse conceito o que torna uma viagem muito pessoal, apesar de fatos históricos estarem permeando todo o texto; o autor trabalha muito bem a estrutura da ficção diferente do freestyle dos textos gonzo.

“Passei praticamente o dia inteiro na biblioteca, fazendo anotações sobre antigas investigações anticomunistas[…]” - Pág. 214

Os temas mais recorrentes no livro são a pobreza, o controle da mídia, da moeda, animalização dos ‘nativos’, racismo do povo porto-riquenho e o discurso anticomunismo pesado.

“Quando o sol ficava realmente escaldante, queimava completamente todas as ilusões, e eu enxergava o lugar como ele era - vulgar, triste e berrante. Nada de bom poderia acontecer por lá.” - Pág. 237

O que eu mais gostei no livro, além das personagens e da boa narrativa - um texto fluido - foi enxergar que o povo não cedeu ao Inglês. Que a única coisa que os americanos não conseguiram colonizar em Porto Rico, a coisa mais significativa e simbólica da luta de um povo ao meu ver, foi a língua deles.

“Que direito você tem de vir até aqui, causar um tumulto e exigir que falemos sua língua?” - Pág. 113