"a-maior-função-do-homem-no-mundo-é-transformar-se-em--literatura" - Reinaldo Santos Neves

terça-feira, 16 de maio de 2023

Entrevistando Contemporâneos & Independentes – Eglair Carvalho

 





Como a literatura entrou em sua vida?

Eglair: Fui autodidata em leitura e escrita a partir dos 04 anos de idade. Encontrei jogado na rua o livro Arca de Noé, de Vinícius de Moraes. Olhei para a história e simplesmente, passou a ter sentido para mim. Foi a descoberta do meu mundo de Nárnia. Aos oito anos comecei a escrever um jornal do bairro juntamente com o, hoje, jornalista, Alex Pandine. Criamos também um jornal cultural chamado “Corações e Mentes”. Desde então, não parei de escrever.



Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor?

Eglair: Fundamental. É minha fonte inesgotável de inspiração e ressignificação de quem eu sou. Meus textos são intertextuais. Gosto de conversar com os autores que leio e deixar que minha escrita seja impregnada por outras vozes.



Consegue viver de literatura?

Eglair: Sou professor de português e, ao longo da minha carreira, eu me especializei em literatura. Em minhas atividades de ensino, seja no uso da gramática ou na formação de professores, aproprio-me da arte literária. Nesse sentido, vivo financeiramente das letras. Como escritor, é complicada a sobrevivência financeira. Todavia, minha escrita abriu portas para conhecer outras culturas, pessoas de pensamentos diferentes. É um processo contínuo de aprender e desaprender. Nos tempos de pandemia, sobrevivi graças à literatura, principalmente para manter minha saúde mental.



Qual a maior dificuldade que encontra para chegar ao público leitor?

Eglair: Em primeiro lugar não há, de forma estrutural e estratégica, políticas de fomento à leitura e escrita. Em segundo, as desigualdades sociais históricas em nosso país, tornam o livro um bem de consumo caro. Por fim, acredito que as temáticas que escolho afastam-me de alguns leitores. Por exemplo, em “Diário de Minhas mortes” abordo o abuso sexual infantil. É um tema que a maioria não gostaria que fosse abordado, pois traz à luz o quanto o ser humano é cruel e a sociedade se esconde num véu de hipocrisia.



Quais são suas referências literárias?

Eglair: Muitas. Gosto de textos grotescos como “A metamorfose” de Kafka, da escrita filosófica e psicológica de Clarice Lispector, da simplicidade da música popular e dos textos contemporâneos, é claro. As minhas referências são determinadas pelo projeto literário que eu estiver escrevendo. Gosto de estudar, ler, reler, fazer novas descobertas para, depois, começar meu processo de escrita.



Lida bem com as críticas?

Eglair: Considero-as inevitáveis e preciosas. Nasci na miséria, gay e tímido, muito tímido. Fui forjado por várias formas de críticas desde criança. Sempre aprendo com elas. As positivas eu agradeço, as construtivas eu me apego a elas e as negativas do ponto de vista destrutivo, eu entrego ao Universo.



Está trabalhando em algum livro no momento?

Eglair: Terminei, há pouco, um livro infantil, cujo tema é “A Porta que nasceu torta na cidade só de retas” que aborda a importância de aceitarmos as diferenças e aprender a nos valorizarmos. No momento, estou escrevendo dois projetos “A Feia Acordada”, outa obra infantil que desta vez irá dialogar com as redes sociais e outro livro de Memórias chamado “A escola que me partiu” – nele falo de um ideal de escola que não existe mais, perdemos o encantamento. Agora, sinto o espaço escolar como um ringue de vaidades, violência, ambição e de desumanização.



O que seria de sua vida sem as letras?

Eglair: Não seria. Minha identidade como pessoa, sujeito e cidadão que me tornei foram construídos por elas, as palavras, as letras e os sons que preenchem o rio caudaloso de minha alma.



Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Eglair: Gostaria, primeiro, de quebrar um mito: quem lê bem escreve bem. Não é verdade. Escrever é outra competência, é uma entrega que exige a observação do mundo, a empatia pelas pessoas, uma busca inacabada de nos compreender. Nesse sentido a dica é: simplesmente escreva, reescreva e aprenda o que suas letras estão lhe dizendo.









Produtor cultural. Poeta. Dramaturgo. Cronista. Elaborador de projetos pedagógicos, culturais e de captação de recursos. Escritor de narrativas acerca de memórias afetivas e de diversidade. Membro do Coletivo Diversidade Literária e Co-fundador da Academia Capixaba de Letras da Diversidade. Produção artística: Fagulhas do Tempo - 1991 - esgotado), As loucuras de Leopoldo (Teatro- 1994 - esgotado) . Versos explícitos (poesia - 2003 - esgotado) Desencontros - Teatro 2004) - esgotado) A voz da Felicidade (Monólogo 2006 - esgotado). Diário de minhas mortes (Narrativa de memórias - 2022). A Porta Torta (narrativa infantil - 2023 - inédito). A Escola que me partiu (Crônicas - 2023 - inédito).

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Alguns contos e minicontos de Lacy Ribeiro





TARDE DE AUTÓGRAFOS 



O escritor, devidamente sentado à mesa onde começaria a autografar sua obra, inquieta-se quando vê se aproximar o menino sujo que estende uma folha de papel almaço encardida. 
Lê o cabeçalho: AJUDEM-ME A COMPRAR UMA CAIXA DE VENDER PICOLÉ. 
Segura o queixo com os punhos fechados e desvia o olhar furioso para as ramagens das árvores da pracinha em frente. 
O bem-te-vi pára de cantar. 
O menino pede, então, um exemplar dos livros. 
Indignado, o escrito abraça os livros e dá o ultimatum. 
O menino se retira, tropeçando nos sapatos dos que começam a entrar. 
Aliviado, o escritor arma a caneta para o primeiro autógrafo.



OS BEIJOS 



Quando ele a tomava nos braços e a beijava, ela se diluía e saía de baixo daquele corpo, passava pelo buraco da fechadura e entrava no apartamento ao lado onde os beijos da outra eram incontestavelmente, mais dentro da boca.



(contos do livro 'Contos de Réis' - 1986)



A CEGA 



A moça cega surgia da esquina da farmácia São Lucas tateando o espaço, ajudada pela bengala. Não se viam seus olhos detrás das lentes escuras, mas ela nos percebia e nos desejava bom-dia sorrindo. 
Era comum sermos cutucados pela sua bengala, nas costelas, nas nádegas e nas pernas. Quando ela acertava alguém, pedia 53 desculpas e sorria. O garoto que vendia jornais é que não gostava muito dela, pois, agachado ao lado da pilha de jornais, de vez em quando levava umas bengaladas na cabeça. Quando ele notava que ela se aproximava com o seu toc-toc, levantava-se e colocava-se na defensiva. Se, por acaso, esquecia-se ou distraía-se por qualquer coisa, era acertado em cheio na cabeça. Mas, o pequeno jornaleiro, como os outros, ajudava-a, nas madrugadas chuvosas, amparando -a na calçada escorregadia. 
Era pontual. Chegava às 5:15 e não esperava muito pelo ônibus de Vila Velha. Recusava ajuda na hora de subir e, ágil, embarcava para o trabalho, sorrindo para a vida que lhe oferecia os dias como eternas madrugadas.


AS NAMORADAS


Quando o jorro de luz, saído das portas subitamente levantadas da padaria, as iluminou, elas se separaram e soltaram as mãos. Baixaram a cabeça e arredaram-se para o cantinho escuro da calçada. Voltaram a se aproximar e a dar as mãos, timidamente.
As pessoas as olhavam de soslaio, mostrando, com meneios de cabeça e risinhos debochados, o espanto.
A que ficou na calçada teve um ataque de tosse, talvez pela fumaceira preta do cano de descarga do ônibus que lhe roubara a amada.


(contos do livro 'Avenida República' - 1987)




Lacy Fernandes Ribeiro, poeta, contista, romancista, nasceu em Barra de São Francisco, ES, em 1948, tendo vindo para Vitória ainda jovem, para estudar e trabalhar, como foi o destino de tantos capixabas de sua geração. Era o dia 31 de março de 1964, data em que se iniciava a ditadura militar, que marcaria os vinte “anos de chumbo” nos quais viveríamos a repressão, o medo, a falta de liberdade e que se refletiria na literatura de toda uma geração, de uma forma mais ou menos realista.

Lacy Ribeiro seguia uma cartilha ideológica e literária. Militante da esquerda, filiada ao Partido Comunista do Brasil, foi advogada, secretária de multinacionais, aproveitando “tudo que extrai de suas experiências ombro a ombro com o povo humilde, o que trabalha, o que fica desempregado, o deslembrado dos que dominam”, conforme consta da sua biografia, onde também se lê: “Lacy Ribeiro, escritora maldita, bendita, iluminada, querida por todos e mal entendida por alguns, faz uma literatura diversificada: poesia, contos, crônicas, romances, ensaios, etc” (In: Contos bastardos, 1991)

quinta-feira, 4 de maio de 2023

‘Alguns trocados’: ‘Contos de Réis’ de Lacy Ribeiro (RESENHA)

 



Lacy é fruto da ditadura, chegou em Vitória em 1964, vinda de barra de São Francisco e muito do que lemos em seus textos são relatos de um período de censura e repressão.

Este é seu segundo livro, o primeiro de contos, lançado em 1986, Cátedra Editora (SP) gênero que a consagraria anos mais tarde. ‘Contos de Réis’ é uma seleção de contos e minicontos que grita, delata e escreve contra a tirania da época.

"De longe, podiam-se distinguir a silhueta do cão que abanava o rabo enquanto o amigo lhe afagava a cabeça, e o semblante do homem, refeito por aquela muda confissão de afeto." - Pág. 48   

Junto de Milson Henriques, Amylton de Almeida, Waldo Motta, Fernando Tatagiba, entre outros escritores da década de 80, Lacy Ribeiro integrava a ‘geração marginal’ no Espírito Santo.

Lacy foi assassinada brutalmente Janeiro de 2013 aos 64 anos.

Lacy Ribeiro em seus ‘Contos de Réis’ dá voz sobretudo aos corpos marginalizados, dando o devido protagonismo. Em seus textos enxergamos os meninos de rua, travestis, ambulantes, prostitutas, pedintes, homens e mulheres a margem.

"- O que mais me impacienta são estas moscas... como são imediatistas!" - miniconto 'O moribundo' - Pág. 75

Lacy escreve de forma certeira sobre a crueza da vida, uma escritora que captou vários tipos de personagens das ruas por onde passava. No fim das contas - e de cada conto - ela descreve com precisão de detalhes a desumanização de muitos e a humanidade de poucos.

O amigo, escritor e jornalista, Fernando Tatagiba escreveu: “seus contos certamente revolverão o espírito do leitor lhe deixarão, no canto da boca, um travo de terror, espanto e revolta diante das diversas formas de injustiças sociais.”

A escritora traz também a tona a hipocrisia da ‘tradicional família brasileira’, escancara a verdade do ‘pai exemplar’ que trai a esposa com seu amante jovem, e critica a burguesia, o capitalismo e o patriarcado da sociedade.

Apesar de ser um livro curto, de apenas 75 páginas, é uma obra densa, pesada, e que trata de assuntos pouco explorados antigamente. Textos que são hoje essenciais em rodas de discussões, clubes de leituras, não é um ilvro vazio, pelo contrário, tem muito a agregar na atualidade.

Alguns contos em tons de deboche e ironia ditam o ritmo da leitura, obra considerada “excessivamente realista, crua, às vezes sem ser fácil ou malcuidada” por Francisco Aurelio Ribeiro (AEL, estudioso da literatura feita no Espírito Santo). Textos zombadores da ditadura militar, da burguesia local e até mesmo dos artistas, que se isentavam das discussões importantes que ela (Lacy Ribeiro) traz no livro.

sábado, 22 de abril de 2023

Heloisa Buarque de Hollanda é eleita para a Academia Brasileira de Letras

 

A escritora e crítica cultural vai ocupar a Cadeira 30, que era da escritora Nélida Piñon





Heloisa Buarque de Hollanda nasceu em Ribeirão Preto (SP), em 1939. É escritora e professora de teoria crítica da cultura na UFRJ, onde coordena o Programa Avançado de Cultura Contemporânea, o projeto Universidade das Quebradas e o Fórum Mulher e Universidade. É autora e organizadora de muitos títulos, como Tendências e impasses (1994) e Explosão feminista (2018).

‘Poesia marginal’

A antologia 26 Poetas Hoje, organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, foi lançada em 1976. Nessa coletânea está a chamada “poesia marginal dos anos 70”.

26 Poetas Hoje, na época do seu lançamento, causou polêmica e recebeu críticas por todos os lados: a Academia Brasileira de Letras, por exemplo, não conseguia ver nada além de um simples valor “sociológico” naqueles “sujos” e “pornográficos” versos produzidos por ilustres desconhecidos.

A ‘geração do mimeógrafo’

O termo “marginal” foi cunhado pela própria Heloisa, organizadora da antologia, e não remete à noção de fora-da-lei, como poderia supor o leitor mais desavisado. Na verdade, ele se aplica a autores que tinham dificuldade para emplacar suas obras em editoras de grande porte. Não é à toa, portanto, que eles foram imortalizados pela expressão “geração do mimeógrafo”, já que se valiam dessa máquina para levar ao público consumidor, de forma ágil e barata, livros de pequena tiragem bancados por conta própria.

Entretanto, 26 Poetas Hoje é emblemático porque fez justamente o contrário: abriu as portas do mercado editorial para a maioria dos que participaram da antologia. Além disso, “marginal” era aquele que traduzia em versos de postura anti-intelectual os problemas do seu cotidiano, revelando sintonia com as mudanças políticas e comportamentais por que passava o país. O momento era de repressão e censura impostas pelo governo militar, mas também se caracterizava pela assimilação da cultura pop, que o tropicalismo de Caetano Veloso e Gilberto Gil ajudou a introduzir.

A ABL teve que deitar

A escritora e crítica cultural vai ocupar a Cadeira 30, que era da escritora Nélida Piñon. Ela recebeu 34 dos 37 votos.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Entrevistando Contemporâneos & Independentes – Deane Monteiro Vieira

 




Como a literatura entrou em sua vida?

Deane: Aprendi a ler por volta dos meus 5 anos de idade, em virtude da alfabetização da minha irmã mais velha. Gostava de competir com ela por meio dos saberes alcançados. Jamais lhe deixei alcançar o nível mais elevado, sem que eu estivesse grudada nela. E, foi deste desejo, que lia sem parar, e que peguei o gosto por conhecer histórias arrebatadoras que mexiam com o meu coração, com a minha mente e com a minha alma.

Um dos primeiros livros que li em minha infância que sacudiu a minha existência, foi o “O meu pé de laranja lima” de José Mauro de Vasconcelos. Trata-se de um enredo muito profundo que destacava a amizade subjetiva e fantasiosa de um menino com uma árvore, que foi capaz de matar a solidão do menino e a minha, mesmo estando acompanhados em família.

Depois, parti para as obras de Monteiro Lobato e me encantei com a sagacidade de Emília, uma boneca falante. E, mais tarde, vieram os títulos da coleção Vaga-lume da Editora Ática e o preenchimento das folhas didáticas com as perguntas sobre cada livro, que passei a ter mania em respondê-las.

Vale ressaltar, que vi de uma família de camada popular - com pouco acesso a literatura no interior do meu lar, exceto a leitura da Bíblia feita por meu pai - e que nas escolas públicas que passei era inexistente o lugar que chamamos de biblioteca.

No entanto, motivada pelo meu desejo interno de leitura para aquisição dos saberes, que já comentei acima, sempre procurei meios para que pudesse ler os títulos que queria, como por exemplo, pedir emprestado aos meus amigos, aos meus professores ou mesmo, comprar com dinheiro que recebia das aulas particulares dadas na escola em que criei na garagem do meu pai, até os meus 15 anos.



Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor?

Deane: Foi na condução do entendimento da ambivalência e da contradição das vidas dos personagens que se igualava a minha vida interior. Descobri pela literatura que ninguém é uma coisa só. E, que inclusive o autor, perde o controle dos seus personagens quando os publica. De modo, que é na polifonia da leitura e da escrita que a humanidade pode testar o seu espírito democrático e livre.



Consegue viver de literatura?

Deane: Consigo viver da literatura, como já disse, porque ela funciona para mim, como um alimento para a minha alma, no entanto, economicamente, como sou uma escritora independente com o respectivo selo “Editora NarraTiana”, além da escrita diária, preciso divulgar e vender os meus títulos, que ainda só pagam os custos com a publicação. Nunca participei de nenhum incentivo ou fomento cultural porque a burocracia me adoece muito internamente. Como minha saúde mental não anda muito bem nos últimos anos, e caso você queira saber os motivos disso, indico o meu vídeo postado no Youtube de nome “Texto-testemunho de uma professora burnoutada”, que esclarece porque tenho poupado minha mente da grande gaiola invisível, que é burocracia e o controle estatal sobre os produtos culturais, que podem minar a criatividade dos artistas e escritores por conta do engessamento dos editais.



Quais são suas referências literárias?

Deane: Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade e Elena Ferrante.



Lida bem com as críticas?

Deane: Ainda não as recebi de modo formal.



Está trabalhando em algum livro no momento?

Deane: Sim. Com os meus mini romances e outros escritos paralelos.



O que seria de sua vida sem as letras?

Deane: Seria uma vida morta e sem respiro diante da exaustão do repetir da vida.



Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Deane:

E.S.C.R.E.V.A.

E.S.C.R.E.V.A.

E.S.C.R.E.V.A.

E.S.C.R.E.V.A.

E.S.C.R.E.V.A.

N.U.N.C.A

P.A.R.E

D.E.

E.S.C.R.E.V.E.R





Historiadora, professora doutora e poetisa social de si, que abusa da primeira pessoa do singular para construir as suas escritas terapêuticas que podem ser lidas no perfil @dor_arte_profa. Em seu canal NarraTiana no YouTube, pode ser encontrado o vídeo “Texto-testemunho de uma professora burnoutada” que tem ajudado as pessoas que experienciam o convívio com a Síndrome de Burnout e a depressão, em se posicionarem pela luta por políticas de reparação com a saúde mental dos trabalhadores.


sábado, 1 de abril de 2023

Mais uma riqueza explorada (RESENHA)

 



“[…] decidi que este lugar é podre até a medula. Quero cair fora.” - Pág. 135

Este livro foi o primeiro de autoria norte-americana que eu li em 2023, livro esse que ampliou minha visão sobre o domínio americano pelo mundo, sobretudo em um país como Porto Rico: pouco conhecido e estudado por aqui.

“Havia algo de estranho e irreal em toda atmosfera daquele mundo onde eu acabara indo parar. Era divertido e ao mesmo tempo vagamente depressivo. Ali estava eu[…] correndo por uma cidade semilatina[…] e tudo acontecia na velha e fascinante ilha de Porto Rico, onde todos gastavam dólares americanos, dirigiam carros americanos e ficavam sentados ao redor de roletas, fingindo estar em Casablanca.” - Pág. 60/61

No livro acompanhamos Paul Kemp, alter-ego do escritor Hunter S. Thompson, um jornalista enviado dos Estados Unidos para trabalhar em um jornal a beira da falência em Porto Rico.

“[…] o Departamento de Estado dos EUA chamava Porto Rico de propaganda dos Estados Unidos no Caribe - a prova viva de que o capitalismo pode funcionar na América Latina.” - Pág. 92

Ao chegar em Porto Rico Paul se vê em meio à uma crise - que afeta diretamente o poder de compra do povo já que a inflação dos impostos em Porto Rico está altíssimo -, além de que o mote do romance é a “industrialização” e o crescimento hoteleiro no local, sobretudo de empresas norte-americanas “colonizando“ mais uma ilha onde descobriu-se o poder de sua extensão de terra.

“Se eu fosse você, ficaria longe da cidade. Os nativos ficam meio enlouquecidos. As melhores festas acontecem nos barcos. A turma dos iates faz seu próprio carnaval.” - Pág. 154

Só pra contextualizar, Hunter Thompson escreve um estilo de literatura inventada por ele chamada ‘gonzo', onde o repórter (o que ele foi por muito tempo na vida) vive a sua própria reportagem. Vemos em ‘Rum: diário de um jornalista bêbado’ a influência desse conceito o que torna uma viagem muito pessoal, apesar de fatos históricos estarem permeando todo o texto; o autor trabalha muito bem a estrutura da ficção diferente do freestyle dos textos gonzo.

“Passei praticamente o dia inteiro na biblioteca, fazendo anotações sobre antigas investigações anticomunistas[…]” - Pág. 214

Os temas mais recorrentes no livro são a pobreza, o controle da mídia, da moeda, animalização dos ‘nativos’, racismo do povo porto-riquenho e o discurso anticomunismo pesado.

“Quando o sol ficava realmente escaldante, queimava completamente todas as ilusões, e eu enxergava o lugar como ele era - vulgar, triste e berrante. Nada de bom poderia acontecer por lá.” - Pág. 237

O que eu mais gostei no livro, além das personagens e da boa narrativa - um texto fluido - foi enxergar que o povo não cedeu ao Inglês. Que a única coisa que os americanos não conseguiram colonizar em Porto Rico, a coisa mais significativa e simbólica da luta de um povo ao meu ver, foi a língua deles.

“Que direito você tem de vir até aqui, causar um tumulto e exigir que falemos sua língua?” - Pág. 113


sábado, 25 de março de 2023

O olho de Lilith [RESENHA] #SêPoesia

 

Editora Jandaíra (2019)



“Sinto nos meus dedos o prazer de estar comigo” - Pág. 23



Houve um tempo em que as mulheres não podiam realizar seus desejos. Neste tempo, não tão longínquo assim elas também não podiam votar, nem trabalhar, elas sequer podiam amar como queriam.



“Serei sua
Sem deixar de ser minha” - Pág. 43



‘O olho de Lilith’ é uma antologia organizada por Mika Andrade, através do selo FERINA (da Jandaíra) por sua vez tendo a curadoria de Jarid Arraes, que une onze poetas cearenses para falar de amor, desejo, sentimentos: tudo o que elas não podiam falar elas escracham neste livro abusado.



“erótica é a forma
como o vento assanha
teus cabelos
na praia” - Pág. 77



‘O olho de Lilith’ incomoda, é uma obra que nasce com a intenção de dar voz à essas mulheres, que ao versarem sobre determinados temas acabam movendo uma engrenagem num sistema machista-patriarcal a muito enferrujada: a liberdade.




“abre as pernas e toca:
xota molhada: xoxota
incessante movediça
os dedos banhando os rios
a erudição se rende aos gemidos liquefeita
rompe o silêncio do mundo.” - Pág. 121



“Este livro não é só mais um livro; ele ultrapassa esse conceito de objeto. Ele se torna um manifesto poético sobre nossos corpos e, “enquanto conquisto cada espaço de carne miúda em mim”, amplio meus sonhos para que cada vez caiba mais mulheres dentro.” – trecho da Apresentação por Mika Andrade. (Pág. 08)




📚💙 Eu e a Thay do @galeoteca nos juntamos para continuar a falar sobre poetas massa e suas obras riquíssimas ao longo de 2023. Eu li ‘O olho de Lilith’ - antologia organizada por Mika Andrade e Thay resenhou ‘Elegia do corona’ de Carlos Fonseca




Bora Sê Poesia com a gente?!




A #SêPoesia é para mostrar poetas do Brasil, você tem alguma indicação? Diz aí.




Gostou de conhecer a antologia? Já conhecia? Me conta também.




✨ Depois daqui vai no IG da @galeoteca e confira o poeta indicado: você vai adorar!


quarta-feira, 15 de março de 2023

Azul da Prússia (RESENHA)

 

Azul da Prússia, Olivia Avelar (Editora Folheando, 2023)



Um tom de azul que descreve sobre a beleza da passagem do tempo. Entre poesias rimadas ou não, uma prosa poética certeira e lívida, Olivia nos convida a navegar nas incertezas que compõem a vida.

“Palavras escondidas se desfaçam de silêncios.” - Pág. 17

‘Azul da Prússia’ é um livro franco na suas indelicadezas, daquelas que “mordem e assopram”, nos assustando mas também nos levando às intenções dos dias na ponta de cada lufada do tempo. O livro é dividido em três partes (MMXVI, MMXVII, MMXVIII) e com poemas inominados.

“A fumaça que sobe é feita de saudade poluída ou de sonhos frágeis destruídos pela vida?” - Pág. 31

A obra é uma prosa de esquina, conversa longeva da palavra com o passado, presente e vislumbres de um possível futuro. Ou ainda, como a própria autora diz em um de seus versos, é “um mar eterno”. (Pág. 23)

É um diálogo breve e íntimo, que busca a profundeza dos sentimentos, ‘Azul da Prússia’ é uma rota marítima para aquelas leitoras e leitores sem receio do risco.

“A maré alta intensa vida. Saudade é memória líquida. O que um dia sentimos nunca termina.” - Pág. 37

Olivia Avelar escreve sobretudo sobre as marcas que ficam quando passamos pela areia da praia - vida -, deixando pegadas que serão lavadas pelas horas, mas jamais pelo tempo. É uma escrita das impossibilidades e de permanecer momentos no toque da memória.

“Somos feitos de tudo que deixamos.” - Pág. 39

Por fim o livro trata das dores, da morte, de aceitar-se e aceitar que as cicatrizes são belas quando nos entregamos ao detalhe de cada traço em nossa pele.

“[…] o frio é domínio dos mortos, a nós cabem os amores.” - Pág. 51

PS. Tempestades sepultam versos desavisados.

quarta-feira, 8 de março de 2023

Sombras dançam neste incêndio (RESENHA)

 

Sombras dançam neste incêndio - Antologia Poética (Editora Oca, 2020)



“Só acredito em poeta experimental que tenha vida experimental.” - Roberto Piva

O livro ‘Sombras dançam neste incêndio’ tenta traçar em panorâmica a vida poética deste escritor que estava sempre se reinventando, desde ‘Paranoia’ (1963) até ter a sua obra reunidas em três volumes pela Editora Globo (entre 2005/2008), antes de seu suicídio aos 72 anos de idade em 2010.




“[...] o leitor é um
puto
o leitor quer dar
& tem medo
o leitor é um hipócrita
irmão de Baudelaire” - Pág. 70




“vocês lerão agora a poesia de um jovem que tem vinte e três anos porque não teve coragem de matar-se aos quinze por isso arrasta-se pelo mundo sem Deus nem Amo pregando todas as violências contra a sociedade negociante[…] recomendando a juventude ser contra os policiamentos interiores e exteriores achando que o cristianismo deve suicidar-se” - Pág. 8

O poeta trabalhava uma linguagem livre sempre com analogias entre céu e inferno, sagrado e profano, que era considerada anti-poética na época. Tem também em algum de seus poemas temáticas homoeróticas e imagética, com visíveis referências da poesia beat norte-americana.




“[...] sou um navio lançado ao
alto-mar das futuras
combinações” - Pág. 82




“Fazer uma leitura crítica da poesia de Piva sem considerar o seu diálogo direto com o modernismo brasileiro não é apenas uma simplificação ou distorção, mas também um grave erro que impede a compreensão da riqueza de sua obra.

Piazzas’, um de seus livros trazia um tom diferente, mas fragmentário, com versos curtos entrecortados [...] buscando inovar na linguagem e no ritmo. Piazzas trocava o ritmo frenético dos versos livres e longos do livro anterior por poemas espaçados, em formato de escada[...]” - trecho da apresentação (Pág. 13)




“Nunca mais levei a sério
nada a não ser os corpos.” - Pág. 89




Vi algumas críticas na internet a respeito deste livro, alguns erros de português, concordâncias e afins por parte da editora, porém recomendo super pra quem quer conhecer o autor pois o livro consegue captar bastante da essência da poesia de Piva.

Pra quem gosta de conhecer mais da obra do autor para além do livro tem coisas sobre ele no audiovisual: Roberto Piva foi um dos protagonistas do documentário ‘Uma outra cidade - poesia e vida em São Paulo dos anos 1960 (2001, ao lado dos companheiros de geração) e também foi tema do documentário ‘Assombração urbana' (direção de Valesca Dios, 2004); esse último eu vi e adorei.




“[…] pelas calçadas crescem longos delírios” - Pág. 39


segunda-feira, 6 de março de 2023

Entrevistando Contemporâneos & Independentes – Sam Caetano

 




Como a literatura entrou em sua vida?

Sam: A literatura faz parte da minha vida desde a infância, partindo do momento em que minha mãe pegava livros emprestados em bibliotecas públicas e levava para que eu lesse. E como tinha prazo de entrega, passei a ler vários por mês, assim nunca mais parei. A escola também teve influência nesse meu processo de leitora, sempre nos levando para a biblioteca da instituição, criando nossa conexão com a leitura e escrita.



Qual foi o papel da leitura para a construção do seu eu autor?

Sam: A leitura teve grande participação na minha descoberta pessoal como escritora. Passei a ver a escrita como um refúgio, um abrigo, um lugar seguro, e para que a escrita exista, alguém antes teve de ter a coragem de escrever algo. E eu sempre pensei, mesmo que fosse um sonho distante de realizar, que algum dia eu poderia ser a pessoa que seria lida por outras pessoas, não só ficar assistindo a literatura acontecer.



Consegue viver de literatura?

Sam: Falando sobre área profissional, eu ainda preciso viver de outros meios artísticos, que de toda forma se relacionam e se integram. Costumo falar que vivo da arte, não tenho pra onde fugir. Além de escritora, sou dançarina, professora de dança e formada em audiovisual. Estou desde sempre inserida na arte, mesmo quando ela ainda ñão me dava retorno financeiro. Porém, falando de literatura em si, me identifico muito, viveria facilmente lendo e poetizando por aí, mas por enquanto escolho andar abraçada com os multiformes meios artísticos dos quais também compõem quem sou.



Qual a maior dificuldade que encontra para chegar ao público leitor?

Sam: Sou escritora poética, e sinto que o público é ainda mais seleto do que se eu escrevesse ficção ou algo do tipo. Eu, inclusive, passei a ler livros de poesia e de poetas nacionais a poucos anos, e entendo até essa estranheza que a escrita real e cotidiana causa. Tem o lado da banalização, como se escrever tivesse que ser sempre algo enfeitado, cheio de magia, personagens e capítulos. E um livro de poesia foge totalmente dessa ideia, ao mesmo tempo, mostra as facetas do autor, ou seja lá quem o livro descreve, de forma lúdica, transmitindo a quem lê o poder da interpretação própria, se retirando desse lugar de entregar algo mastigado. Então, uma das minhas maiores dificuldades, é ser vista como pessoa poeta. Como, acima de tudo, alguém tentando gritar tudo que habita na alma, no intuito de dizer “olha, sou ser humano também, sinto o que você sente” e acalentar corações alheios.



Quais são suas referências literárias?

Sam: Me disseram que clichê é algo que funciona, então lá vai. Cresci lendo O Pequeno Príncipe, e quando digo que cresci, é literal. Reli esse livro diversas vezes e a partir disso consigo a proeza de conectar qualquer acontecimento da vida com alguma metáfora do livro. Eu lia muitos contos literários, e jurei que meu primeiro livro seria nesse gênero, aliás. O último que li antes de lançar meu livro foi O mundo de cá, de Juane Vaillant (artista capixaba). Gosto muito de Ni Brisant também, que vai de poesia até contos, foi presente de um amigo poeta que me deu cerca de três livros desse mesmo autor. Fiquei apaixonada.



Lida bem com as críticas?

Sam: Depende do dia. Tem vez que estou segura a ponto de nada me abalar, parte disso é graças a um processo de me desprender da validação alheia. E também tem dias que comentários não construtivos impregnam nos meus pensamentos e passo o dia pensando naquilo, mas nunca cheguei a desistir por críticas.



Está trabalhando em algum livro no momento?

Sam: Sem pressão, mas sim! Estou sempre com algo em mente, minha criatividade não para.



O que seria de sua vida sem as letras?

Sam: Desde mais nova, quando escrevia na agenda da escola durante o intervalo, eu dizia que a escrita é parte de quem sou. Então, eu não seria tão eu se me podassem as letras, me tirassem as palavras e não existisse mais a poesia.



Dê uma (ou mais) dica(s) para quem quer ser escritor:

Sam: Crie hábito em prestigiar outros escritores. Acredito que crescemos mais quando nos unimos. É importante também ter foco, tirar a escrita do âmbito do comodismo, buscar se aperfeiçoar sempre, lendo e escrevendo com hobby também. Não se cobrar tanto. Se hoje há bloqueio criativo, amanhã podem surgir grandes ideias. O tempo leva tempo. Ser seu maior fã, mesmo que a modéstia seja algo louvável. Acreditar em si vem a partir da ideia de crer que você merece estar no espaço que almeja ocupar. Vá com fé e sem medo!






Sam Caetano, tem 21 anos, além de ser escritora poeta é bailarina e professora de dança, é também formada em rádio e televisão. Faz arte e vive sendo artista desde sempre, frequenta diversos espaços culturais e cria laços com tudo que há de ser expressão.  
Instagram: sam_ideia